(Alice Carvalho no espetáculo “No tempo em que os bichos falavam”)
Eu sou Alice Carvalho, contadora de histórias e brincante por natureza. Nasci no Inhambupe, interior da Bahia, onde tive toda a liberdade de crescer brincando na rua com as crianças vizinhas e meus primos, de tomar banho de rio, andar de bicicleta, frequentar os circos e parques que chegavam na cidade, participar das festas populares, quermesses, novenas, festa da padroeira, quadrilhas de São João. Sempre morei na Gameleira, uma ladeira larga e cheia de árvores frondosas e alguns terrenos baldios. Era a rua principal da cidade, tinha o cinema e era por onde passava de tudo, pessoas que iam pra feira, enterros, carroças, boiadas que iam para o matadouro, alunos que iam ou voltavam das escolas, cortejos, procissões. Mas o principal era que tinha muitas crianças e a gente brincava muito. Em época de férias ficávamos brincando até meia noite. Era embaixo das árvores mais frondosas que contávamos histórias e as noites em que faltava energia, a luz da lua e as caveiras de mamão acesas com velas, que os meninos colocavam nos terrenos baldios, preparava o clima para as histórias de assombração, causos de lobisomem, mula sem cabeça, caipora e visagens, e assim, ficava difícil dormir, e as noites eram cheias de monstros e fantasmas. Em casa, tinha uma radiola de pilha e minha mãe comprava muitos discos de história e de cantigas de roda. Em dias chuvosos de inverno, minha mãe preparava lanche e vinham todos os primos e os vizinhos para ouvirmos juntos. Lembro que a história preferida da maioria era Chapeuzinho Vermelho principalmente quando os caçadores vinham cantando e quando eles abriam a barriga do lobo e salvavam ela e a vó. E também as cantigas do Carequinha (Altamiro Carrilho) e do Topo Gigio. Meus pais sempre incentivavam nossas brincadeiras, leituras, contavam histórias, falavam das memórias da família, contavam da infância deles, das brincadeiras. A família de minha mãe era uma família de músicos e eles sempre tocavam e cantavam em casa e faziam peças de teatro (dramas) que apresentavam com alguns amigos. Cresci ouvindo essas histórias, em meio a muitas cantorias. Toda tarde íamos todos os netos para a casa de minha vó Alicinha, que ficava na praça matriz e lá, o quintal era nosso paraíso. Lá também morava meu tio Tonico, que foi o ser mais brincante que já conheci e que se divertia criando muitas brincadeiras e aventuras com os sobrinhos. Enquanto isso, nossas mães e minha vó, que tinham o hábito de conversar muito, sentavam em cadeiras na calçada para conversar e muitas vezes relembrar memórias e a gente sempre acabava, vez ou outra, parando para ouvir também essas conversas. Assim, com a família da minha mãe sempre convivi com a música, com a arte, com as memórias. Com meu tio Guega e minha tia Nide, comecei a conhecer a cultura popular, a ir pra forró, reisados, sambas, rezas. Também os banhos de rio, de lagoa. Com meu pai, que foi criado na roça, trabalhando no campo, aprendi a valorizar e admirar a natureza, a olhar o céu e reconhecer o Cruzeiro do Sul, a Estrela Dalva, as Três Marias, a ver as estrelas cadentes, a cuidar das plantas da casa. Saber sobre horas pela posição do sol, apreciar os relâmpagos em dias de trovoada, saber quando vai chover, apreciar as fases da lua, a valorizar as coisas simples da vida, a ser solidária, ajudar o próximo, a valorizar a família e os amigos.
Assim cresci, brincando pelas ladeiras e becos da minha cidade, e me apaixonei pela cultura popular, por histórias e memórias. Aos 15 anos vim, por vontade própria, estudar na capital. E a única coisa que me prendeu aqui e me fez resistir e não voltar pra minha terra foi o mar, que ainda me fascina até hoje. Mas nunca deixei de voltar pra minha cidade, de conviver com minha família e meus amigos.
Aqui sempre me senti uma “estrangeira”, sempre tive certeza de que não sou da capital, embora goste de morar aqui, e acho que hoje, não escolheria outro lugar para viver. Certa vez, pensando no que fazer para ajudar com as crianças carentes da minha cidade, tive a sorte de ver um anúncio de uma oficina de contadores de histórias. Tomei coragem, agredi a minha timidez e fui até lá. Assim encontrei a Cia Teatro Griô, e finalmente, encontrei meu chão, onde pude me conectar com minhas raízes, me encontrar na “cidade grande.” E nessa Família Griô, permaneço até hoje. Fazer parte dessa família é estar sempre me encantando, me surpreendendo, me aprimorando, aprendendo, descobrindo mundos diferentes e crescendo, na minha arte e como ser humano. Tenho certeza de que esse era o mundo que procurava aqui, na “cidade grande,” mesmo sem ter noção do que queria. É amor pra toda a vida!