Professor Rafael Morais

(Rafael Morais no espetáculo “O Caçador de Sonhos”)

Rafael Morais é narrador, professor de teatro, dramaturgo, arte-educador, ator e diretor teatral. Doutorando e Mestre em Artes Cênicas pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA. Pós-Graduando em Mitologia Comparada na Psicologia Analítica – IJBA – Instituto Junguiano da Bahia. Bacharel em Artes Cênicas pela Escola de Teatro da UFBA. Lecionou durante 2006, 2007 e 2008 nos Cursos de Graduação em Artes Cênicas da UFBA: Direção Teatral, Licenciatura em Teatro e Bacharelado em Interpretação da Escola de Teatro da UFBA, onde também foi professor do Curso Livre de Teatro (2009 e 2010) e desenvolveu pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, sobre a encenação de narrativas de tradição oral. Realizou residência artística no Teatro Potlach – Roma – Itália. Fez cursos e especializações na arte do teatro, palhaço, teatro de rua, e arte de narrar histórias com importantes mestres no Brasil, Inglaterra e Itália. É coordenador artístico do Teatro Griô, com o qual realiza diversos projetos inspirados no teatro e nas narrativas de tradição oral. Tem realizado cursos, palestras, vivências, processos criativos, espetáculos e compartilhado a metodologia da Cia Teatro Griô em universidades, simpósios, encontros e festivais artísticos no Brasil e exterior. Foi arte-educador no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e Instituto de Hospitalidade. Bolsista do Projeto Griô Kaiodê – Cultura Afro-brasileira na Arte Educação – Núcleo de Estudos do Teatro Popular/UFBA. Docente do Projeto Irê Ayô – Educação para as Relações Étnico Raciais – Instituto Anísio Teixeira. Criou e coordena os encontros “Teatro Griô em Flôr – Inspirado nas Narrativas de Tradição Oral”; “Festa no Céu – Encontro Artístico de Valorização da Cultura da Infância” e “Teatro a Céu Aberto – Encontro da Arte do Teatro de Rua”. Realiza as “Noites Griô” – sessões para ouvir e narrar histórias e os eventos “Histórias Afro-Brasileiras” e “Tempo de histórias”, evento anual que reúne, numa mesma temporada, três distintos espetáculos do repertório do Teatro Griô a cada ano. Encenou, dentre outros, os espetáculos “O Caçador de Sonhos – Inspirado nos mitos dos Orixás”; “Na Teia de Ananse – Trama da Palavra”; “Histórias da Árvore Tempo”; “A Velha a Fiar”; “Histórias de Mãe Beata”; “Brincando com a Morte”; “Yalodê – histórias afro-brasileiras”; “Histórias de Causar Espanto”; “Causos de Zé Bocó e Mané Preguiça”; “Um Tal de Pedro Malazartes”; “Tringuilim – no Tempo em que os bichos falavam”; “Os Sábios de Chelm – histórias absurdas”; “Sete Peles” e “Minha Aldeia”.

 

(Sandra Maia no espetáculo “Histórias para acordar o mundo” – Foto de arquivo pessoal)

Nasci em Salvador, mas minhas raizes estão em Senhor do Bonfim, terra de poetas, músicos e a cultura junina sempre festejada! Minhas companheiras de infância foram minhas avós, que faziam renda e contavam histórias. Histórias de vida, de assombração e histórias inventadas. Eu viajava naquele mundo de magia e encantamento. Ao ter contato com os primeiros livros, um novo mundo se abriu para mim e eles passaram a ser meus companheiros de aventura. A vida profissional me levou a trabalhos burocráticos e acadêmicos e passados 32 anos resolvi me dedicar integralmente as artes. A pintura e a música estão presentes na minha vida, mas o ofício de contadora de histórias, além de prazeroso, me reconectou com minhas origens.
E por isso minha conexão com a companhia de Teatro Griô iniciou com a oficina A Arte de Contar Histórias, depois a residência na Arte de Narrar Histórias e para minha felicidade um convite para fazer parte dessa Companhia de Teatro Griô, onde as histórias, às narrativas nos falam de tradição popular, de esperança, de ancestralidade , de cura e liberdade de expressão! Eternamente grata a Cia de Teatro Griô!

Entrevistador: Fabrício Brandão | Entrevistado: Rafael Morais

Publicado em: Revista Diversos Afins, entre caminhos e palavras. 06/2016.

 

O ano, 1998. O espírito que paira na atmosfera de ações traduz-se numa palavra profundamente motivadora: encantamento. Diante disso, há que se reconhecer que projetos de vida, sobretudo aqueles que são ligados à arte e seus amplos matizes, ganham corpo na medida em que se baseiam num genuíno desejo de transformação. Evidenciar os sentimentos humanos é, sem dúvida alguma, um diferencial de qualquer investida artística. Marcado por tal lema, eis que surge, em Salvador, o Grupo Teatro Griô.

Juntamente com sua parceira na vida e na arte, a atriz Tânia Soares, o também ator Rafael Morais demarca os primeiros passos do que é hoje uma das principais companhias de teatro da Bahia, certamente também do Brasil. Originalmente vindos da arte teatral e circense, Rafael e Tânia voltaram suas atenções para a fabulosa ferramenta da oralidade e seus desdobramentos. Abraçando fundamentalmente o viés da narração de histórias, o Grupo Teatro Griô assinala todo um despertar em torno do que seus fundadores preferem chamar de palavra viva, aquela que une, mobiliza e promove mudanças no ser pensante e pulsante.

Sobretudo depois de testemunhar alguns espetáculos do grupo, os quais mostram o quão viva está a nossa memória diante dos caminhos da expressão oral, veio com vigor o desejo de entrevistar Rafael e saber dele que espécie de sustentáculo mantém acesos tais caminhos da arte. Com suas feições de ator, diretor, professor, Mestre em Artes Cênicas (UFBA), ele fala com a propriedade de quem vive o processo criativo cotidianamente, sem negligenciar seus apelos, chamados e também seus abismos.

Na conversa de agora, fica registrado um breve balanço desses 18 anos de atividade do grupo, através do qual Rafael Morais confessa que ali está também a dinâmica real de sua expressão enquanto ser humano. Suas respostas confirmam que o poder transformador da arte, movimento que se opera principalmente de dentro pra fora, é marcado especialmente pela capacidade de materializar os sonhos.

DA – O Teatro Griô surge como resposta a alguma necessidade em especial?

RAFAEL MORAIS – O surgimento do Teatro Griô não foi algo planejado. Veio de uma necessidade de falar sobre a nossa própria cultura. Na época, estávamos fazendo um trabalho voltado para o circo, para o teatro popular, e fomos realizar algo na Itália e Inglaterra com alguns pesquisadores teatrais e também da área de palhaço. Naquele momento, eu senti uma vontade de criar uma apresentação que falasse das nossas histórias. Logo que chegamos da Europa, fui fazer algumas oficinas a pedido dos professores da Escola de Teatro, e um deles, o querido e saudoso Carlos Petrovich, me convidou para ir a um terreiro de Candomblé em Salvador, o Ilê Axé Opô Afonjá. Fiquei encantado e, logo depois, o mesmo professor nos chamou para fazer um trabalho numa escola municipal de Salvador como pesquisadores do Núcleo de Estudos do Teatro Popular, o NET-POP, da UFBA. Fomos eu e Tânia como pesquisadores bolsistas do CNPq para fazer um trabalho de valorização da cultura oral, das histórias, dos mitos naquela escola a qual me referi e que fica dentro do terreiro. A partir daí, esse universo da tradição foi nos arrebatando. Isso em 1998. Começamos a desenvolver uma metodologia própria para levar essas histórias para as crianças da escola, os professores e também para o pessoal da comunidade, trazendo uma releitura, um universo de transposição dessas narrativas de tradição oral para a cena. Então, encenamos algumas histórias, fizemos cortejos, tentando realizar algo que não fosse o teatro tradicional. Vimos que o que fazíamos naquele momento em termos de teatro não contemplava aquele universo. À medida que íamos fazendo, criamos um jeito nosso de lidar com essas histórias, valorizando a simplicidade, a sinceridade, o contato direto com o público, o envolvimento das pessoas, tudo como se fosse uma festa, um encontro, uma roda de histórias com as pessoas mais velhas, sem tirar o brilho, o encantamento, buscando algo não artificial, mas sim uma palavra viva, que trouxesse essa cultura viva. Acho que foi um encontro mesmo, pois a gente ouviu aquelas histórias e pensou que tinham tudo a ver com o que estávamos querendo, mas nem sabíamos direito o que desejávamos encontrar. Foi a arte de contar histórias.  Percebi que ela contemplava tudo o que buscávamos, um teatro popular, de encontro direto com as pessoas, que valorizasse nossa própria cultura, envolvesse as pessoas e pudesse ir a diferentes espaços. Queria fazer algo que não fosse restrito apenas ao palco italiano. Ir ao encontro do público, nos barracões, escolas, terreiros, praças.

 

 

DA – Qual a importância do viés da matriz africana no trabalho de vocês?

RAFAEL MORAIS – Foi desde o início uma grande inspiração. No entanto, o Teatro Griô não se limita às narrativas de tradição oral africanas ou afro-brasileiras. Trabalhamos com a tradição oral que existe no mundo todo em diferentes povos e culturas. Então, narramos histórias da Península Ibérica, da Rússia, Índia, do Oriente, dos árabes. Com a cultura afro-brasileira não poderia ser diferente, pois estamos na Bahia, onde essas histórias, cantigas e narrativas como um todo são predominantes. Ela tem uma importância muito grande por conta até desse contato com o público. A gente trata de histórias do mundo inteiro e temos diversos espetáculos inspirados em histórias de vários lugares. A matriz africana nos inspirou muito. No teatro, já éramos muito ligados a histórias da mitologia grega, nossa formação ocidental. Sempre gostamos de mitologia, e quando nos encontramos com os mitos dos Orixás, por exemplo, foi um encantamento, uma alegria. Acho que pelo encantamento essas histórias nos pegaram. Conseguimos, a partir dessa cultura afro-brasileira, perceber a junção da palavra cantada, essa ligação entre o sagrado, o mítico e o cotidiano. Aprofundando a pesquisa, fomos compreender que existe um mundo vasto de histórias de matriz africana, não somente dos Orixás, mas histórias como os contos de Ananse, a primeira aranha que existiu e que ensinou a arte de contar histórias aos homens. Tem contos muito mirabolantes, epopeias, uma riqueza muito grande do continente africano. Também temos histórias fascinantes em todos os povos, como é o caso dos árabes. Na verdade, a gente, com a cultura afro-brasileira, conseguiu tocar em narrativas que transcendiam as histórias dos irmãos Grimm, os tradicionais contos de fadas. Perceber essa diversidade foi fantástico. E a cultura afro-brasileira teve esse papel de abrir as portas para nós nesse universo da tradição oral.

 

 

DA – Há um viciado costume de se olhar a cultura de matriz africana apenas sob um ponto de vista meramente exótico, como se não houvesse um reflexo possível na realidade. O que você acha dessa redução?

RAFAEL MORAIS – Esse não é nosso olhar para com a cultura afro-brasileira. Não tem nada dessa questão do exótico, do que as pessoas chamam de folclórico, de buscar esses elementos que sejam mais histriônicos. A importância dessa cultura é muito grande, ainda mais aqui na Bahia. Mais do que imaginamos, essa cultura é nosso berço de civilização, de humanização e formação. Acho que isso também está muito relacionado à tradição oral, à questão de uma certa importância maior que se dá à palavra escrita como se a oralidade não fosse algo profundo. Acabamos muitas vezes desvalorizando por uma questão cultural, política, ideológica, dessa coisa de achar que tudo o que vem da África não presta ou que vem de um universo menor. Em nossas pesquisas, percebemos isso o tempo inteiro. E vemos o quão equivocada é essa visão de mundo que coloca a tradição oral, as referências africanas como algo menor. Temos alguns avanços acontecendo, algumas leis, como é o caso da Lei 10639 de 2003, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas. Mas as pessoas às vezes não sabem como fazer. Alguns professores não têm a formação adequada, não sabem como trabalhar isso, pois a vida inteira tiveram uma formação que privilegia o eurocêntrico, desprestigiando tudo o que vem da África. Mas sinto que isso está mudando. No Teatro Griô, fugimos esteticamente desse campo do exótico. Inclusive, fazemos questão de não levar para a cena essa visão de mundo, tanto que não representamos, por exemplo, Orixás em cena, ou seja, mudamos muitas vezes as melodias das canções, trazemos um universo que coloca o ser humano e os sentimentos das histórias em evidência. Essa dramaturgia é construída não para reforçar o exótico. Temos, por exemplo, o espetáculo “Histórias de Mãe Beata” que é bem simples, mas que é uma festa de samba de roda que acontece e as pessoas vão contando histórias, mas em nenhum momento representamos os Orixás em cena. Não vamos ao terreiro e copiamos o que existe ali. É uma atitude também de respeito e de aprofundar essas questões. Acho que é um perigo muito grande você tratar um universo tão rico como algo simplesmente exótico. É um desserviço e um desrespeito, até uma ofensa a toda e qualquer cultura tradicional você se apropriar dela e não devolvê-la como se deveria. Buscamos valorizar a vivência, que é tão rica da cultura afro-brasileira, e a palavra viva, os grandes narradores que temos, não apenas os griôs, mas os akpalôs, que significam fazedores de histórias. Essa palavra viva que toca nos sentimentos humanos, de pessoas de qualquer lugar do mundo. Recentemente, apresentamos em São Paulo cinco espetáculos no Festival Internacional de Narradores, o Boca do Céu, e tinha gente do mundo inteiro que ouviu essas histórias da cultura afro-brasileira e se encantou, pois contamos e essas pessoas se emocionaram não porque acharam engraçado e se envolveram. Procuramos burilar os sentimentos e tratar isso como a gente sente e vive. Muita gente olha os africanos com a questão das cantigas, com essa coisa do feitiço das palavras, do sagrado com uma condição de se assustar porque eles (os africanos) transcendem a culpa, vão para o prazer no sentido do corpo que dança, está vivo e ligado à magia. Aqui no Ocidente parecemos ter perdido essa magia, mas ela está em todos os povos. Se você for ver as histórias dos nórdicos, dos orientais, o tempo inteiro esse universo de magia está presente nelas. As histórias afro-brasileiras encantam porque mantêm ainda viva essa sabedoria que está muitas vezes mais generalista do que específica, valorizando a vivência, a experiência, o momento aqui e agora, as cantigas, os poemas, os orikis. É muito lindo esse universo. Não tem como reduzir ao exótico. Tratamos essas histórias da mesma maneira como tratamos as demais. Reinventamos aquilo para a cena. Acredito que precisamos ter da cultura afro-brasileira essas referências. As histórias que o Teatro Griô acaba levando para pessoas de diferentes lugares têm um papel muito importante de ser mais uma referência. É muito bacana percebermos as crianças afrodescendentes assistindo o espetáculo e se reconhecendo nele a partir das histórias e não da forma em si, transcendendo inclusive a cor da pele. É a história que passa adiante, o universo do imaginário. Então, é uma riqueza e um poder muito maior do que a própria imagem que está se vendo ali. Uma importância muito grande nesse sentido de formação e de educação. A narração de histórias afro-brasileiras tem esse componente de ser civilizatória, das pessoas reconhecerem a cultura como algo que fala diretamente a elas, os sentimentos humanos, os heróis e anti-heróis. As histórias aproximam as pessoas, não as excluem. É a busca da gente se reconhecer enquanto ser pensante, que sente e vive nesse mundo. Além de uma importância grande de formação e educação, vem desmistificar e revelar a luz que existe nessas histórias e que às vezes está por baixo de um véu de exotismo e de ridicularização do outro. A arte de narrar histórias consegue desvelar esses sentimentos, essas imagens e trazer para nossa vivência cotidiana de ser humano que vive e pensa. Temos as particularidades da cultura de cada um, que são importantes enquanto reconhecimento das diferenças, mas no fundo somos feitos de sonhos e sentimentos.

DA – O que dizer da oralidade enquanto essa verdadeira mantenedora da memória?

RAFAEL MORAIS – Interessante essa pergunta porque a gente poderia imaginar justamente o contrário, que aquilo que não escrevemos o vento leva, como diz um ditado popular, ou seja, não conseguimos registrar. A tradição oral, inclusive, faz nascer a escrita. E a memória é viva, o tempo inteiro a gente está reinventando, revendo tudo. A tradição oral tem muitas funções e estratégias mnemotécnicas de fazer permanecer essa memória a partir das suas transformações. Temos muito material de tradição oral que se manteve vivo além da escrita. Hoje a gente consegue ver que os contos, mitos, estão aí nas coletâneas de recontos, histórias, em material escrito. Muitas vezes isso tem sido uma possibilidade muito bacana para pesquisadores, artistas e para o próprio povo conhecer essas histórias que transcendem os tempos. Ao mesmo tempo, a tradição oral mantém essa palavra viva, que não está ali só cristalizada, mantém a magia. A magia você encontra no conto que está escrito, mas é bem diverso de você poder ouvir uma história de boca para ouvido. Essa dinâmica da tradição oral tem sua própria força porque é flexível, se transforma, vai mudando com os tempos, com o saber que a gente já construiu há muitos séculos. É como se fosse uma espiral nesse movimento de memória e de passagem dessa tradição. A própria arte de narrar histórias sempre foi essa mantenedora, a trama da história sempre foi passada do mais velho para o mais novo por sucessivas gerações. Se a gente atentar, vamos perceber no dia a dia a quantidade de histórias nas vivências de cada pessoa. Estamos o tempo todo transformando isso. A escrita passou a ser mais um instrumento de interação, mas esse mecanismo de memória continua vivo o tempo inteiro no ser humano. Nós todos somos seres épicos, narrativos, além de lúdicos e pensantes. Por que será que permanece vivo o encantamento no mundo de hoje? Por que é que hoje em diversos ambientes que chegamos há o interesse de pessoas de todas as idades com as histórias de tradição oral? É algo inexplicável. Todo mundo reclama que os meninos ficam muito ligados na internet, televisão, nos joguinhos, mas quando eles estão diante de uma história que está sendo contada é como se reacendesse um mistério na memória dessas crianças. Essas crianças são de todas as idades, pois em alguns espetáculos nossos, às vezes, vêm adultos sozinhos. Nosso público é bem heterogêneo e é bem bacana perceber esse jogo de memória que há na gente, essa necessidade de ouvir essas histórias e depois sair espalhando elas por aí. No Brasil, acontece uma coisa muito interessante. A cultura popular está viva nas cantigas, não somente naquelas de infância, mas também nas cantigas de trabalho, nos mutirões, cirandas, diversos ritmos espalhados pelo país. Aqui na Bahia temos as cantigas de roda de tirar versos. É uma maneira de se preservar através da música. É interessante que as histórias de matriz africana, a maioria delas, se mantiveram preservadas na África por conta de cantigas, mas aqui no Brasil perdemos muito isso, ficou mesmo a trama se passando. A cantiga traz um momento de lembrar a trama inteira da história. No Teatro Griô, gostamos muito de misturar a palavra cantada com a falada, a palavra poesia, a palavra lírica.

 

 

DA – A contação de histórias pode ser melhor abrigada no seio da educação formal?

RAFAEL MORAIS – Com certeza. E não apenas com objetivo explícito de ensinar, pois a história, a narrativa de tradição oral transcende a informação e educação, vai além, para o universo do encantamento, do tocar as pessoas. Nesse universo onde tudo acontece pleno, você está o tempo todo aprendendo. Esse aprendizado que vem de uma sessão de histórias é difícil de descrever no sentido mais amplo porque é muito profundo. Além de tudo o que está sendo ensinado a partir da narrativa, a história ensina por si só nessa experiência de arte. As escolas muitas vezes estão preocupadas apenas com um depósito de informações para uma resolução prática que é fazer provas, o que acaba sacrificando todo o ser que está ali para aprender. Aprender não somente no sentido de conhecer, mas de ser mesmo. A história vem para esse campo da convivência, do aprender a instigar, a correr riscos, sonhar, a você perceber o universo do imaginário, que é tão rico, e de fazer isso se desenvolver cada vez mais em alunos de toda e qualquer idade. A narração de histórias pode acompanhar todos os momentos de nossa vida, do nascimento até nossa despedida aqui dessa experiência de vida. O tempo inteiro estamos contando histórias. O bom professor conta histórias a todo tempo, mesmo quando não acha. Um tema bem narrado é o papel de todo professor, aquele que consegue revelar o que não está acessível ao outro ser. Os excelentes professores têm esse domínio da narrativa, da comunicação. Muitas vezes a gente vê a arte sendo usada como um simples instrumento de aprendizado das disciplinas. Precisamos mesmo ter momentos de apreciação estética nas escolas, pois senão ficamos colocando a arte a serviço de determinados conteúdos. Nesse momento, temos um ganho em todos os sentidos, cognitivo, afetivo, interpessoal, imaginário. Precisamos descobrir isso com urgência para dar um pouco mais de frescor à educação. A arte de contar histórias vai num ponto crucial da educação, que é o pensamento crítico, a formação desse ser que é capaz de encontrar seus caminhos. A arte de contar histórias não entrega tudo de bandeja, ela convida você a enveredar nesse caminho de descoberta de si mesmo. O bom contador sabe que não está ensinando, está ali aprendendo junto. É nesse encontro entre narrador e ouvinte que acontece essa magia, que é a arte de narrar histórias. É muito bonito você perceber o aprendizado que surge daí. E, claro, não tem nada a ver com as lições de moral, como acontece muitas vezes num sentido de podar a criança. Na arte de contar, a história passa à frente e as pessoas vão conseguindo fazer suas próprias interpretações sem que alguém precise impor algo, dizendo que é isso ou aquilo.  É um momento de liberdade artística, no qual as histórias podem ser aliadas da educação com alegria, encantamento, ludicidade e plenitude. Para mim, o valor está no próprio encontro da narração, momentos das pessoas poderem ouvir e contar histórias sem se preocupar com os mecanismos didáticos.

 

 

DA – Uma coisa bastante interessante no trabalho do Teatro Griô é a multiplicidade de atuações, ou seja, não apenas a encenação dos espetáculos é o foco, mas também desdobramentos variados sob o ponto de vista da formação, das rodas de conversa, intercâmbios, sem falar na mescla de elementos presentes, tais como o clown, música, dança. Como é atuar dentro dessa intenção multifacetada?

RAFAEL MORAIS – É um presente para o artista. Uma oportunidade de não separar as possibilidades criativas de expressão. Temos tudo ali ao mesmo tempo. Você está ali contando a história, mas de forma plena, com movimento. No sentido da formação, ela é muito ampla, de elementos do cômico, do palhaço, do teatro de rua. O aprendizado para o artista com relação ao espaço cênico da rua é fantástico. Essa possibilidade de ter esses elementos técnicos da voz, da interação com o público, da disposição do espaço. O Teatro Griô é realmente um presente para nós que o integramos porque é nossa morada artística, digamos assim. É a possibilidade de você conviver com tudo aquilo que acredita. É uma fonte que nunca seca. Parece que o tempo inteiro estamos descobrindo coisas novas, pesquisando. É uma obra muito aberta que vamos construindo no contato com o público. Ao mesmo tempo em que é um presente, é também um desafio você lidar com essa metodologia do Teatro Griô, tanto que vira e mexe a gente faz audição, algumas pessoas ingressam e temos uma maneira própria de trabalhar que acaba unindo esses elementos todos que você falou, mas com muita simplicidade. Fugimos um pouco do que é esse mundo do espetáculo, acabamos entrando num encontro com a arte em diversos lugares e matrizes culturais. Buscamos esse momento de convivência do público com os narradores, as histórias. E, claro, tem todo um aprimoramento técnico com diversos profissionais que acabam contribuindo. É um universo muito amplo, que a gente busca dar unidade e simplicidade. No grupo, uma coisa bacana é que os atores não sabiam tocar um pandeiro e hoje a gente já tem os narradores tocando percussão, rabeca, acordeom. É um trabalho que não para nunca. O tempo inteiro estamos aprendendo, exercitando, pesquisando, aprofundando. É muito instigante fazer parte como artista desse núcleo.  Mas a tradição oral, a palavra viva, é o que dá unidade a todo esse trabalho.

 

 

DA – O que dizer da resposta do público nesses diferentes ambientes por onde vocês circulam?

RAFAEL MORAIS – Impressionante. Aqui em Salvador a gente vai para diversos ambientes e às vezes quer atingir um público distante. Por exemplo, fizemos um projeto de teatro de rua na Casa da Música, no Abaeté, em Itapuã, e para nossa alegria veio gente da cidade inteira. Temos percebido que o público tem acompanhado a gente. As pessoas vão percebendo o grupo como uma grande família e criam um certo vínculo com a gente, o que acho bacana. Cria uma intimidade e as pessoas encontram a gente na rua e falam conosco como se fossem amigas. Falam das histórias e de como foram tocadas por elas. E a gente percebe uma sinceridade. Acabamos criando uma maneira diferente de narrar as histórias, que não é teatro convencional, um caminho artístico autoral. Seja em comunidades mais distantes como quilombos, comunidades rurais, ou em grandes centros urbanos, a receptividade é ótima. Em São Paulo, por exemplo, a recepção foi fantástica. As pessoas lotavam as apresentações, os ingressos esgotavam em meia hora, elas se interessavam pelas histórias. Engraçado que tem gente que pergunta se as histórias são reais. Então, o vínculo que criamos com o público acaba sendo de cumplicidade. Acho que é o maior presente que o artista pode ter, saber que as pessoas estão se importando. Em São Paulo, conhecemos na plateia alguns artistas de fora do país, tanto que estamos indo pra Buenos Aires por conta disso. Fomos convidados a apresentar três espetáculos nossos num festival internacional de narração oral porque o público assistiu. É um envolvimento que não é frio. A gente acaba de alguma forma passando para o público um pouco do que vivenciamos em nossas salas de ensaio, essa relação de sinceridade, esse mergulho nos sentimentos humanos. E o público percebe.

DA – Salvador é uma cidade que abraça verdadeiramente o teatro?

RAFAEL MORAIS – Pergunta complexa (risos), porque há vários públicos e tipos de teatro. Tudo da Bahia é muito paradoxal mesmo. Você não tem um único jeito, mas sim uma infinidade de possibilidades com relação a essa recepção. O teatro pode ser melhor abraçado. Tem um amigo que diz que se amanhã fecharem todos os teatros de Salvador, ninguém vai sentir falta (risos). É uma piada, mas faz a gente refletir, pois se fecharem, as pessoas não vão protestar. O teatro também é algo muito amplo. A Bahia tem uma tradição de teatro muito grande, não só pela primeira faculdade da América Latina, a Escola de Teatro da UFBA, que possui grandes mestres, mas também pelo histórico de teatro popular que influenciou muita gente. O teatro em Salvador é muito forte. Quando cheguei em Salvador há quase 20 anos, senti que a pulsação de espetáculos era realmente muito maior que agora. Alguma coisa se quebrou nesse mecanismo de atração do público, de constância do público buscando os espetáculos. Porém, quando acontecem determinados espetáculos, o público vem. Então, não é algo estático. Tem a coisa do mercado também, não é só questão do público abraçar e gostar. Aqui em Salvador, ao mesmo tempo em que o público ama teatro, a gente percebe que ele poderia abraçar mais. No entanto, quando acontecem os espetáculos de rua, alguns atingem um público imenso. O que tem acontecido com o Teatro Griô é o fato de encontrarmos pessoas que dizem ser aquela a primeira vez em que foram ao teatro. Acho que estratégias, caminhos e possibilidades podem ser buscados para aproximar as pessoas ao teatro. O teatro na Bahia é muito forte, rico e valorizado. Tem uma vanguarda em pesquisa. O público que vai ama o teatro, mas acho que mais pessoas poderiam ser atingidas. Aqui em Salvador, apesar da imensa afeição das pessoas com espetáculos realizados na rua, não há um teatro de rua pulsante. Interessante esse paradoxo. A gente tem uma demanda, digamos assim, muito grande por teatro de rua, pessoas que lotam os espetáculos quando eles acontecem. Fizemos um espetáculo chamado Circo Teatro na Estrada, que saiu por diversos bairros de Salvador, e em todos eles a recepção era imensa, as pessoas ficavam felizes com o que estava acontecendo, querendo que acontecesse novamente. Com relação a isso, o público abraça mesmo. Você conta nos dedos os grupos que fazem teatro de rua em Salvador, e mesmo assim não fazem com aquela constância porque se acredita que não tem tradição, mas tem sim. O público quer abraçar, mas como vai fazer isso se não tem muitas vezes algo que se aproxima dele?

 

 

DA – O que o faz continuar naquilo que você definiu como a arte de sonhar acordado?

RAFAEL MORAIS – Essa pergunta é muito difícil. Eu me pergunto muito isso. No entanto, tenho continuado, tenho seguido em frente porque fazer arte aqui, não só na Bahia, mas no Brasil, não é fácil, pois além das dificuldades do ofício, tem todo um mundo de coisas que precisamos superar a cada momento. Durante muito tempo, pensei que não era algo racional, pois se sabia que era essa dureza por que continuava? Tenho continuado e, quando olho para trás, percebo que realmente é meu caminho. Não dá pra explicar muito. Hoje consigo compreender esse desejo de seguir em frente, que ultrapassa o medo, pois a cada projeto novo há um risco muito grande. Hoje se fala muito em crise, mas para quem faz arte é pior ainda, pois a gente vive daquilo que tece, do trabalho cotidiano, dos espetáculos, do processo criativo que por si só já é algo efêmero. Aí, a gente seguindo adiante com isso é muita coragem. Agora, não me vejo fazendo outra coisa. Claro que surgem propostas de seguir por outros caminhos, longe da arte, o que muitas vezes poderia trazer uma segurança no sentido material. Mas acho que é a arte que me mantém vivo, pois abraço um caminho de crescimento e vida, um ofício. É meu lugar no mundo, minha maneira de continuar seguindo em frente, sonhando. O meu trabalho se confunde com meu sonho. Acho que isso é muito profundo. É ao mesmo tempo o meu devaneio no sentido do processo criativo e de tudo o que implica você fazer arte, de mergulhar nos abismos desse processo que não é fácil para ninguém, ainda mais nesse tempo que estamos vivendo. Um outro nome que se dá ao pessoal que segue esse ofício das histórias é Gente das Maravilhas, pois se encantam com a simplicidade e grandeza da vida, com o encontro. Quando entra num processo criativo, nem imagina descobrir coisas que nem sabia que existiam em você. Isso quando experimenta de verdade o processo criativo, pois tem muita gente que executa determinadas funções ditas artísticas, mas não vive ele. Você não consegue largar. Estou aqui hoje pensando em novos projetos, novos caminhos. É também a ideia da missão. Sinto isso muito forte. Tenho vontade de continuar fazendo teatro, mas ao mesmo tempo é maior do que tudo isso, pois arrebata, chama e você não tem saída. E também você acaba se comprometendo. Eu mesmo tenho compromisso com esse grupo, que hoje tem vários artistas que sobrevivem junto com a gente, alguns com outros empregos. Então, você acaba entrelaçando sua missão com as de outros parceiros cúmplices. Eu e Tânia, que fundamos o Teatro Griô, temos uma responsabilidade muito grande. Minha filha também, que desde pequenininha está envolvida no universo artístico do teatro. A gente virou uma grande família que faz isso, meio que vive e respira o tempo inteiro isso com grande responsabilidade, mas também com muita alegria. As dificuldades não são a tônica, pois a gente supera todas elas e vem um ganho imenso que não sabemos dizer o que é.

 

Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos e filmes.

Por: Ivana Luckesi

Publicado em: Revista Diversos Afins, entre caminhos e palavras. 07/2012

 

Eu não nasci numa família de artistas, mas sim, numa família comum, de classe média, que trilhou um caminho como de muitas outras, de opções tradicionais, com poucas possibilidades criativas e momentos lúdicos. Na pré-adolescência, porém, dei-me conta de que sempre carreguei a arte comigo, que latejava e aguardava o momento certo de se revelar. Comecei a fazer aulas de teclado e a cantar. Depois, já na adolescência, deixei o teclado e continuei cantando, inclusive na escola, participando de festivais, acompanhada de minha irmã, tocando seu violão.

Quando ingressei na faculdade de Direito, deixei-me contaminar pela atmosfera tradicional e, para dar conta dos estudos, fui abandonando a música. Àquela época, não me sentia capaz de conciliar interesses tão diferentes.

Depois que me formei e passei a trabalhar, voltei a sentir falta da arte. O mundo jurídico era sério e estanque demais pra mim. Precisava me libertar, extravasar meus sentimentos, explorar outras possibilidades e, principalmente, encontrar a minha criatividade. Sim, porque acredito que todos nós somos criativos, mas é preciso encontrar caminhos para desenvolver essa criatividade. Então, retomei as aulas de canto e comecei as de violão.

Mais tarde, chegou a hora de parar novamente. Casei-me, iniciei minha trajetória materna e renunciei à música para tentar conciliar trabalho e maternidade. De outro lado, a partir daí passei a viver intensamente o universo da infância, lendo muito sobre o assunto, cantando, brincando, contando histórias para meus três filhos, descobrindo, verdadeiramente, a ludicidade em minha vida. Percebi que a arte, que um dia me fizera companhia, não havia desaparecido.

Eu me aproximei especialmente das histórias infantis. Aliás, sempre me senti atraída por elas, não importando muito se me faziam rir ou chorar, mas apenas o fato de me transportarem para outro lugar e viver, ainda que em sonhos, algo diferente.

Entusiasmada e querendo compartilhá-las, decidi que contaria histórias para crianças com câncer, aquelas que chegavam ao hospital para fazer tratamento e não tinham com quem conversar ou brincar. Com esse propósito, iniciei o curso de contadores no Teatro Griô.

Começava aí a minha trajetória como contadora. A trajetória de uma pessoa comum, sensível, tímida, observadora, que se alimenta de sonhos e que, embora tenha trilhado, profissionalmente, o caminho do formalismo jurídico, conseguiu dar um colorido especial à vida, descobrindo a arte de contar histórias.

No início do curso de contador, imaginava que encontraria pessoas que me ensinariam as técnicas adequadas de contar histórias, que dariam dicas de livros com bons contos e que me revelariam os grandes segredos de um contador.

Para minha surpresa, eu aprendi lições que vão muito além dos recursos que podem ser utilizados na contação ou dos vários tipos de textos que podem ser trabalhados. Muitas respostas estavam dentro de mim e me surpreendi com a minha própria capacidade de vencer limites que eu sequer sabia que existiam.

O processo de aprendizado é contínuo, gradativo, construído com leveza, criatividade, misturando aspectos culturais, memórias pessoais, cantigas, dança, troca de experiências, expressões vocal e corporal e momentos de improvisação. Sem falar nos exercícios de autoconhecimento, com corpo e mente trabalhando juntos. Nada disso é dado pronto, ao contrário, vai tomando forma a cada encontro, com muito estímulo à entrega, à expressão livre de julgamentos e à autonomia criativa.

Eu fui invadida por essa arte de uma forma muito prazerosa e, desde o primeiro dia de aula, quando não contive as lágrimas ao relembrar uma memória da minha adolescência, sabia que muitas coisas boas ainda estavam por vir e tive a certeza de que muitas outras histórias eu teria de buscar dentro de mim.

Surpreendi-me com a capacidade que temos de expressar o que um conto tem de melhor, usando a voz, o corpo e a emoção. Manter o “fio” da narrativa e, ao mesmo tempo, ser capaz de contagiar, emocionar e envolver o público é um  desafio que vale a pena viver. Um desafio que não é difícil quando se tem a consciência de que cada um tem o seu jeito de contar uma história e de que todos nós somos “contadores” em potencial, bastando que nos deixemos levar por esse caminho instigante, concedendo-nos uma oportunidade.

Além disso, foi fantástico constatar que a arte da contação vai muito além do universo infantil, alcançando pessoas de todas as idades e mexendo com o imaginário de todos os que apreciam e gostam de escutar uma boa história.  Quando a narrativa se descortina, projetamos as imagens através da imaginação, viajamos através do enredo e criamos uma expectativa constante pelo que está por vir. O resultado é um momento de encantamento e prazer.

Quando pisei no palco pela primeira vez, na mostra artística Panos e Tramas, cantando uma música para introduzir a minha história, deixe-me levar pela delicadeza que o texto e o momento exigiam e fiz uma verdadeira viagem.

Cada gesto foi trabalhado, cada palavra e, junto com a música e os efeitos, fui tecendo a minha história, aproveitando cada minuto, torcendo para que o tempo não parasse. Eu queria ficar ali pra sempre. Nunca imaginei que pudesse sentir isso! Eu fiquei muito emocionada e, num certo momento da história, achei que fosse chorar. Estava completamente envolvida e o meu primeiro encontro com o público não poderia ter sido melhor.

Logo que terminei esse ciclo do curso, fui convidada por meu querido professor, Rafael Morais, para integrar o grupo residente de contadores de histórias do Teatro Griô: o Akpalôs – Fazedores de histórias. Fiquei muito honrada com o convite e aceitei na hora, abrindo-se, a partir dali, as portas para novos caminhos.

Fazer parte do grupo é um presente, porque o contato com os outros integrantes incrementa, fortalece o processo de aprendizado. É essa troca que enriquece o trabalho, faz dele uma construção conjunta, mesmo nos momentos em que cada um é protagonista de suas próprias histórias.

Estou vivendo uma fase muito especial no Akpalôs, de preparação para apresentação de dois espetáculos: um coletivo e um individual (solo). E o processo criativo que envolve esses dois trabalhos tem sido muito gratificante, uma grande oportunidade de amadurecimento que estou tentando aproveitar da melhor maneira possível, com dedicação e alegria. A construção do solo está num processo mais adiantado e será apresentado ao público primeiro.

O solo é um caminho sem traçado prévio ou delimitado. Ele acontece aos poucos, vai se desenvolvendo a seu tempo, a cada encontro do grupo e mesmo fora dele. É um trabalho muito pessoal, intrínseco, principalmente porque há o recurso às vivências da infância, aproximando o contador de sua própria realidade. Nesse processo, os jogos, as cenas, as brincadeiras e cantigas são muito utilizados, seja como recurso de incentivo à criatividade, seja como parte da própria apresentação.

Inicialmente, deixei-me levar por imagens, ideias, memórias de infância, canções, registrando tudo, como um diário. Depois passei a correlacionar essas informações, costurando memórias, histórias, pensamentos e canções.

O solo, assim, vai se formando através da união de histórias, memórias e cantigas, resultando em blocos de histórias que, mais tarde, serão consolidados numa única apresentação, após o trabalho de direção realizado pelo professor.

Agora é o momento de construir e apresentar os blocos, exercitando a contação sem medo de arriscar ou do resultado. Estamos experimentando, compartilhando e aprendendo com as apresentações, próprias e dos outros contadores. E é isso que temos realizado nos encontros do grupo.

Não posso deixar de pontuar que, durante esse percurso de formação, enfrentei algumas dificuldades. Primeiro, o nervosismo nas diversas oportunidades em que me apresentei para os demais colegas. Iniciava a contação das minhas histórias com a voz trêmula e respiração alterada, o que fazia com que acelerasse a narração, comprometendo as suas nuances e o próprio enredo do texto. Não conseguia me entregar ao momento de forma relaxada, ao contrário, ficava tensa e preocupada em acertar ou mesmo com o julgamento dos presentes. Isso gerava outros problemas, como a dificuldade de encarar o público e a má utilização do espaço físico. Era como se estivesse contando uma história dentro de uma redoma ou existisse uma barreira me distanciando do público.

Aos poucos, e ciente dessas dificuldades, que só me atrapalhavam, comecei a trabalhar o nervosismo, com o apoio incondicional de Rafael, dedicando-me cada vez mais à apreensão das histórias, preparando-me melhor para as apresentações em aula, exercitando minhas técnicas particulares para manter o autocontrole e tentando me convencer de que poderia errar e aprender com os erros. Também, procurei me aproximar mais do público, trabalhando o medo de encará-lo e fiquei mais atenta à questão dos movimentos durante a contação, para que todos os espaços cênicos pudessem ser aproveitados. Deu certo, porque hoje me sinto mais tranquila e segura antes de me apresentar, consigo olhar para os presentes, sinto-me mais à vontade com o espaço, a narrativa flui com mais naturalidade e tudo isso promove uma troca fantástica com o público.

Além disso, tive de trabalhar a impostação da voz. Ao narrar uma história juntamente com uma memória pessoal, utilizava-me de idêntico estilo de representação, seguindo um mesmo ritmo, colocando a voz no mesmo patamar, sem que se pudessem distinguir as diferentes atmosferas nas quais os textos estavam colocados. O resultado disso era uma narrativa uniforme, padronizada, sem fluidez. Memórias e histórias se confundiam, eu e a contadora éramos a mesma pessoa.

Essa questão foi pontuada por Rafael de forma muito objetiva e esclarecedora e foi fundamental para o meu crescimento no processo criativo. A mudança exigiu de mim um perfeito entendimento a respeito do que ele queria dizer e um trabalho pessoal de concentração e treino para conseguir colocar em prática a distinção do que era meu e do que era da contadora. Mais um desafio que consegui superar e que representou pra mim uma evolução significativa no meu percurso como contadora.

A partir do próximo semestre, depois das apresentações dos solos de cada integrante do Akpalôs, daremos continuidade à preparação para o espetáculo do grupo e existe, sem dúvida, um clima de muita expectativa com relação a esse projeto. Será o meu primeiro espetáculo com os antigos membros do grupo e certamente não precisarei esperar que ele aconteça para experimentar a emoção desse desafio, porque nos próprios encontros já sinto um entusiasmo diferente, uma vontade enorme de fazer esse espetáculo e uma profunda alegria por estar participando de cada passo de sua construção, que envolve histórias de bichos, brincadeiras e versos.

Depois que mais este ciclo chegar ao fim, quero continuar contando histórias, vivê-las sempre que puder, continuar com as aulas, me conhecer mais. Porque aprender a contar, interpretar um texto é apenas uma parte da imensidão que se abre quando se está num curso de contadores. A gente aprende coisas que só o coração pode sentir e que não tem como explicar, precisa viver.

 

Por: Rafael Morais

Publicado em: Revista Diversos Afins, entre caminhos e palavras. 06/2012.

 

O teatro é o campo por excelência das ambiguidades e paradoxos. É o terreno das incertezas, das efemeridades, das transformações e mudanças, por vezes, instantâneas. As coisas no âmbito teatral mudam da noite para o dia, de uma apresentação à outra, e até de uma cena a outra numa mesma noite. O que já se havia conquistado pode perder-se inexplicavelmente, do mesmo modo que há descobertas inesperadas, momentos de inspiração que trazem ganhos maravilhosos à encenação. E isto não depende apenas da equipe de criação do espetáculo, mas também de estarmos sujeitos ao encontro com o público e a todas as situações emergentes que esta arte implica.

Fazer teatro é participar de um jogo único, indescritível, propiciador de imenso prazer e entusiasmo. Mas, muitas vezes, requer grande esforço, persistência e fé. Não são novidade para ninguém as dificuldades que os artistas enfrentam para viver do seu ofício, montar um espetáculo e mantê-lo em cartaz. No cenário baiano, diversos relatos de artistas levam-me a pensar que somente muito amor e dedicação motivam–nos a permanecermos firmes na arte teatral.

A arte teatral é uma atividade complexa, nada tem de simplória. O teatro é uma obra composta por diversos elementos que associados constituem uma ideia de unidade. Cada artista faz a sua parte e todos acabam por contribuir para um resultado artístico coletivo. O ator, o texto, os cenários, os figurinos, a luz, a música, a maquiagem, os adereços, a produção e o encenador como criador/administrador, destes e outros elementos da cena, envolvem-se numa empreitada comum de preparar uma apresentação aberta à presença do público.

Este percurso, da concepção cênica à montagem teatral, da criação de um produto pré-acabado, que será levado ao encontro com o público, é um processo muito rico de possibilidades. Iniciar um novo ciclo criativo teatral é como lançar-se ao mar numa nova viagem. A gente se prepara, planeja, organiza, mas, uma vez começada a aventura, tudo poderá acontecer. E muitas decisões deverão ser tomadas “em alto mar”. Poderíamos dividir este processo de criação de um espetáculo em, no mínimo, duas grandes etapas: a fase de ensaios, preparação e elaboração de todos os elementos cênicos que integrarão o espetáculo; e a temporada de apresentações. Por vezes, a primeira fase é demasiadamente longa e a segunda demasiadamente curta. Noutras, a primeira é curtíssima e a segunda consegue sustentar-se em extensas temporadas de sucesso. Há quem julgue frustrante, principalmente alguns atores, ensaiar por meses a fio e permanecer apenas alguns dias em cartaz, o que poderá ser ainda mais desalentador caso sejam dias de plateia quase vazia.

É evidente a necessidade e importância da presença do público para o acontecimento artístico teatral. O teatro só acontece com este encontro. Calderon de La Barca afirma que “para se fazer teatro basta um tablado e uma paixão”. E realmente o ato teatral pode ser resumido a esta simplicidade, claro que além do espaço da cena, também existe ator e público. Talvez, justamente por isso que a arte teatral não tenha sucumbido às novas tecnologias. É como se esta experiência estivesse cravada na alma humana, a experiência do jogo de interação com um fingidor, um ator, que assim como revelou Pessoa sobre o poeta, “chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”.

Uma das coisas que mais angustia os artistas com relação a sua obra é como ela será recebida pelo público. Em alguns casos, o que pensaríamos ser um sucesso não causa nenhum deslumbramento no público. Outras vezes algo desprezado por nós na feitura do espetáculo encanta a plateia. E ainda há diferentes plateias a serem contempladas: a plateia dos críticos, dos amigos, dos colegas de profissão. As plateias cheias e as vazias. As de pagantes e as de não pagantes.

Acredito que o tema suscite muitas discussões sobre o que implica “considerar a presença do público”. Numa primeira leitura, talvez nos perguntemos se isso significaria fazer espetáculos que agradem ao público. Será que o público hoje quer assistir apenas espetáculos cômicos? Ou a questão seria fazer espetáculos chamados “comercias” ou, talvez, produções com artistas famosos, como, por exemplo, “atores globais” que atraem público e mídia? A diversidade existente de público também me leva a pensar na dificuldade de existência de espetáculos que sejam unânimes em agradar a audiência. Existem, sim, espetáculos propícios a agradar um grande número de pessoas e grupos específicos. Assim como cada público tem fome de algum tipo de espetáculo, o artista ou grupo tem a sua fome de encontro com públicos específicos.  Um amigo encenador teatral, ao ser perguntado sobre que tipo de público ele preferia, simplesmente respondeu: “A casa lotada!”.

Há atores que adoram uma plateia “quente”, vibrante, participativa; e, quando encontra este público o artista diz: “hoje o público estava ótimo!”. Já para outros, que preferem um público atento e silencioso, ao encontrarem com um animado, afirmam que este público é horroroso. E ainda existem aqueles atores que, por exemplo, caso uma ou mais pessoas da plateia estejam rindo de forma inesperada em determinada cena, param o espetáculo para passar sermão no público, com o pretexto de o estarem educando. Como se houvesse uma receita para o público comportar-se nesta ou naquela cena. Às vezes, numa situação dramática em que se espera um tipo de reação da plateia, ela responde, inusitadamente, de maneira oposta ao planejado pelos atores.

Muitos artistas, preocupados em desvendar o enigma do potencial de simpatia e aceitação que o espetáculo irá proporcionar, incluem a participação do público desde o início do processo criativo. São os chamados ensaios abertos, onde os espectadores têm a oportunidade de assistir e, algumas vezes, até opinar sobre o espetáculo em seu processo de construção. Nestes ensaios, o público pode participar de determinados momentos e aspectos da confecção da obra de arte, interagir e ter um olhar diferenciado sobre o “produto” que irá consumir.

Os ensaios abertos à participação do público são também um excelente momento de preparação para o jogo de cena, visto que os atores, ao ensaiarem um espetáculo, apenas simulam a presença do público e têm o olhar e opinião somente da equipe que participa do processo de montagem da encenação. É como se, nesta primeira etapa, faltasse a outra peça fundamental do jogo. O público pode contribuir muito para a feitura e amadurecimento do espetáculo, e, geralmente, quando é convidado a assistir um trabalho ainda inacabado, em fase de construção, tende a ser muito generoso. Como sabem que ainda não está pronto, ajudam com o seu olhar de fora, avaliam e opinam. Sem contar que as suas reações e interações no momento em que o elenco atua, por si só, já são um termômetro para a equipe de criação do espetáculo.

O fato é que cada encontro é único. Seja de que tipo de teatro for. Este ano, na temporada de uma de nossas montagens no Teatro Griô, do espetáculo de teatro de rua “Brincando com a Morte”, apresentado em dez diferentes bairros de Salvador, tivemos, mais uma vez, a experiência de levar o teatro aonde ele geralmente não chega, de levar um espetáculo teatral a pessoas que talvez nunca tenham assistido anteriormente a nenhuma obra de teatro. Foi apresentado o mesmo espetáculo nas dez localidades visitadas, gratuitamente, graças aos recursos financeiros advindos do Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua, com o qual o nosso grupo foi contemplado. Em cada localidade, uma nova experiência coletiva, impactante e indescritível. O público era sempre heterogêneo, composto de pessoas de todas as idades e até de diferentes classes sociais, mas, quando começava o espetáculo, todos faziam parte de uma mesma vivência, as estratégias da encenação e o desempenho dos atores conseguiam dar unidade ao público. E, também, cada um ali mantinha a sua individualidade, participava do seu jeito, com o seu repertório próprio.

O espetáculo “Brincando com a Morte” leva à praça pública a peleja de astutos mortais contra figuras alegóricas, como a morte e o diabo, sempre buscando alongar um pouco mais a vida. Uma verdadeira celebração inspirada nos folguedos populares do Recôncavo da Bahia, como o samba de roda, as caretas, os bonecões, a arte dos repentistas, dos pregões, das cantigas populares e outras expressões do povo, aliadas ao encantamento e magia do Teatro de Rua. O grupo recorre a recursos e técnicas diversas como perna-de-pau, máscaras, palhaço, canto, dança, improvisação teatral e técnica de contador de histórias. A encenação, dirigida por Tânia Soares, mescla momentos de encantamento, suspense, humor e beleza, num diálogo intenso e de contato direto com o público.

O Texto foi criado com inspiração em contos populares e literatura de cordel, apresentando, a um público de todas as idades, as aventuras de Zé Malandro na sua peleja contra a morte e o diabo. A trama é composta de três cenas principais, entremeadas por música, narração e interação com o público. Os atores se revezam entre narradores e personagens para contar a história de Como Zé Malandro Enganou a Morte; noutra cena, Madrinha Morte, um homem consegue ter a morte como comadre e, na cena lírica Jardim das Sempre Vivas, dois velhinhos se despedem da vida juntos e apaixonados.

O cenário, máscaras e adereços, de autoria de Maurício Pedrosa, também contam com diferentes elementos inspirados em folguedos populares característicos do Recôncavo baiano, a partir de pesquisa dos festejos diversos como reisados, caretas, nego fugido, dentre outros. Os figurinos, de Tânia Soares, realçam a dualidade entre a vida e a morte e contribuem com a criação de atmosferas contrastantes entre os tons sombrios em diversas facetas da personagem Morte e a alegria das cores vivas dos figurinos inspirados nos festejos populares que reúnem simplicidade e beleza. A direção musical é do renomado músico e compositor Amadeu Alves, que criou uma trilha original para o espetáculo, passeando por diversas atmosferas, sendo ora incidental, marcando a presença dos personagens e das imagens de cada cena, e, noutros momentos, cantada pelos atores com abertura para participação do público.

Claro que este encontro da obra de diversos artistas e seus muitos elementos cênicos com o público da rua só foi possível por conta do patrocínio do Governo Federal conquistado pelo grupo, pois são inúmeros os custos para a realização de um espetáculo desta natureza. E, no grupo Teatro Griô, já realizamos bastante e ainda temos muita vontade de realizar, cada vez mais, Teatro de Rua. Neste ponto, temos mais uma situação paradoxal. O estado da Bahia possui intensa cultura de rua; as pessoas transformam os espaços públicos numa grande celebração da vida. A alegria se esparrama pelas cidades nas festas de largo, nas lavagens, no carnaval, nas micaretas, reisados. Os baianos gostam de conviver nas ruas e praças e param para assistir as apresentações que os artistas oferecem nos espaços disponíveis. Porém, apesar da inegável vocação do estado para o teatro de rua, a realização de espetáculos desse tipo ainda é muito pequena. O fomento a essa forma de arte é imprescindível, pois permite a realização da obra de artistas dedicados, a valorização da cultura local e o acesso gratuito do público aos espetáculos.

Matutar sobre este encontro entre atores e público faz-nos refletir sobre o propósito da arte que produzimos e para quem estamos produzindo. Atualmente, a sobrevivência de um espetáculo teatral está diretamente ligada à apreciação do público que irá definir a sua permanência ou não em cena, seja nos espaços privados, onde existem muitos gastos, seja no espaço da rua, onde os custos não são menores, e há um preço muito alto para os artistas. Daí, a necessidade de se pensar os espaços, a presença do público e o fazer teatral que estamos compartilhando para enriquecer a nossa arte e a capacidade do teatro de permanecer vivo.

 

Por: Rafael Morais

Publicado em: Revista Diversos Afins, entre caminhos e palavras. 05/2012.

 

É importantíssima a qualquer ator, e, porque não dizer, a qualquer ser humano a sabedoria de saber rir de si mesmo. Somos, a todo o momento, cobrados a atingir metas, conquistar resultados, a não errar, e, nós, atores, somos muito mais cobrados a acertar, a sermos brilhantes, talentosos, virtuosos. A experiência de estar em cena, diante dos olhares e julgamentos do outro, pode ser dolorosa quando não conseguimos atender às expectativas do público, do diretor, da crítica, ou, a mais cruel de todas: à nossa própria expectativa. E isto, muitas vezes, pode até nos afastar da maravilhosa experiência de correr riscos.

O ator é uma criatura muito sensível, como diz Shakespeare, é feito da mesma matéria dos sonhos. Os atores podem ter a capacidade camaleônica de vestir a pele de diversos personagens. A competência de vivenciar em cena, tramas variadas. De fazer refletir, rir, chorar, satirizar, chocar, fascinar, de causar emoções variadas e intensas. A alquimia de transformar o verbo em carne, a palavra escrita em expressão viva, tendo como matéria-prima o próprio corpo, voz, sentimentos e experiência de vida. No entanto, determinados atores, por vezes, sofrem excessivamente com a possibilidade do acaso, do erro, do julgamento e do fracasso.

A carreira do ator pode ser comparada aos bons vinhos, quanto mais velha, melhor. A vivência, o valor da experiência, é o maior tesouro de um ator. Porém, acredito que os atores não precisam sofrer demasiadamente para exercer o seu ofício. Falo principalmente com relação ao julgamento do próprio ator para consigo mesmo. Os próprios períodos excessivos de ensaio são, às vezes, uma tentativa obsessiva de eliminar todo e qualquer risco, erro ou imprevisto. E alguns atores só fazem sacrificar-se, e por vezes acreditam que só pode haver sucesso se houver sofrimento, sem deixar quase nenhum espaço ao prazer de vivenciar o próprio ofício. Neste ponto, a bem da verdade em muitos outros, os atores contemporâneos têm muito que aprender com outros ilustres artistas da cena: os palhaços.

O palhaço é um perdedor feliz. Enquanto o ator, na atualidade, tem necessidade extrema de acertar, o material de trabalho do palhaço é o erro. E o palhaço é feliz em sua arte de fracassar. Os palhaços revelam de forma dilatada os sentimentos humanos. Percorrem, com sua simplicidade e astúcia, do grotesco ao sublime, do ridículo ao encantamento. O palhaço sabe que enquanto faz rir, está tocando na sua própria condição humana, imperfeita, falha, tosca, e que é este o seu material de trabalho.

Quero compartilhar com o leitor, mais uma vez, minha experiência própria, o quão precioso foi aprender diversas técnicas de palhaço. O quanto ser um aprendiz de palhaço pode colaborar com o ofício do ator.  O palhaço é como um duplo do artista, um amigo que o acompanha por toda a vida. Poderão mudar as apresentações, o repertório, mas continuará conosco, crescendo com os nossos erros e acertos. Tive a maravilhosa oportunidade de trabalhar, no Brasil e no exterior, com diversos mestres e caminhos de palhaço, sejam da tradição circense, do teatro de rua, dos bufões, e do próprio palhaço do teatro (mais conhecido como clown). Com cada um deles aprendi muito. Porém, gostaria de tratar aqui, especificamente, de uma tradição de palhaço muitas vezes esquecida e desvalorizada, a dos palhaços brasileiros de circo.

O espetáculo circense brasileiro é plural e único, pois, ao longo do seu desenvolvimento, não se ateve apenas às especificidades dos grandes circos de atrações, mas dedicou-se, também, no domínio dos pequenos e médios circos, à apresentação de dramas e comédias, características do denominado circo-teatro, bem como do chamado circo de variedades que busca mesclar as atrações circenses com shows diversos e até peças teatrais. E justamente o palhaço é o protagonista de todas as atrações nesses circos, das comédias ou dramas, shows, peças teatrais, entradas ou esquetes. Nas duas modalidades, seja no circo-teatro ou no de variedades, diferentemente dos grandes circos (onde o palhaço tem o papel de “tapa buracos” enquanto são montados os equipamentos dos grandes números), o palhaço é a figura central dos espetáculos dos pequenos e médios circos.

Essa pluralidade deu ao palhaço brasileiro a oportunidade de desempenhar papéis e funções que o espetáculo clássico europeu desconhecia. Como bem afirma Mario Fernando Bolognesi, autor do livro Palhaços: “Com efeito, no Brasil, além das entradas e reprises o palhaço teve e tem um lugar significativo na prática teatral que os circos desenvolveram e ainda desenvolvem.” (2003, p. 53). No circo brasileiro, um vasto repertório de comédias foi aos poucos sendo formado, possibilitando ao palhaço expandir suas formas de atuação. “Desse encontro adveio uma forma cênica aberta, formada e baseada na capacidade de interpretação e improvisação do palhaço, que teve a liberdade e a audácia de não estar restrito a gêneros fechados.” (Bolognesi, 2003, p. 53).

Bolognesi afirma que os roteiros das comédias circenses foram mantidos na memória oral dos palhaços, transmitindo-se de geração em geração. Além disso, os palhaços de circos pequenos, por serem a base do espetáculo e pelas características diferenciadas do pequeno circo, permanecem em cena um tempo muito maior, recorrendo assim às comédias de maior fôlego. Os palhaços têm um repertório de forte apego à linguagem oral, que pode ser encenada isoladamente, ou pode juntar-se às outras, num fluir ininterrupto, quando o ritmo e a duração são dados a partir da interação com a plateia.

O palhaço apoia-se tanto na prática antiga e familiar dos atores circenses ao compor o seu personagem palhaço, de forma tradicional, como também é marcado pela singularidade do ator e sua liberdade de criação. “Desta forma, a atividade de criação, guiada pela liberdade, tornaria possível a exteriorização não apenas da realidade percebida pelo indivíduo, mas também das potencialidades das quais os indivíduos são portadores.” (PANTANO, 2007, p. 18). Embora a criação destes personagens se dê a partir de tipos fixos, constituídos no decorrer da história das máscaras cômicas, cada palhaço, no entanto, é único.

Muitas das habilidades do palhaço, principalmente do palhaço brasileiro de circo e rua, são utilizadas por mim nas encenações do Teatro Griô, como a atitude de contracenar com a plateia: a atuação, ora como palhaço, ora como um dos personagens interpretados pelo próprio palhaço*; as transições instantâneas de emoção, de ritmo e até de caracterização dos personagens; a criação de seu próprio personagem palhaço e a autoria de sua apresentação artística; a capacidade de rir de si mesmo e ao mesmo tempo de revelar o encantamento e o sublime através de elementos simples como um pedaço de tecido, uma flor, um instrumento artesanal ou um expressão facial, bem como a utilização do corpo como um todo expressivo, a transitar entre o grotesco e o sublime; a aptidão para criar atmosferas repletas de imaginação e poesia do mesmo modo que sai delas facilmente para revelar aspectos do cotidiano.

Estabelecem-se, portanto, intricadas relações entre o palhaço e o ofício do ator em meus processos criativos no Grupo Teatro Griô, desde uma abertura à oralidade na transmissão dos conhecimentos, até os procedimentos adotados no próprio desempenho cênico, como a organização dramatúrgica (de sua própria autoria, recorrendo, no entanto a tramas de tradição oral), a interação com o público, e a atitude do artista de conceber ele próprio seu personagem, que assume traços de sua própria personalidade.

 

Segundo Odette Aslan (1994), o que diferencia um ator de teatro, chamado dramático, do palhaço de circo, que atua em esquetes, são, sobretudo, o tom e o estilo da obra. E, ainda segundo a autora, seria mais comum que um artista do teatro de variedades conseguisse representar em um teatro de comédia, aparentemente sem grande esforço de adaptação, ao contrário do ator que custaria muito a ajustar-se às atividades paralelas dos circenses e do teatro de variedades. Aslan lista uma série de qualidades inerentes ao artista do teatro de variedades e do circo, como: segurar o público desde o começo; o dever de dar o máximo de seus esforços e da sua habilidade; saber sustentar sozinho a cena; atuar de maneira econômica e despojada; ter senso de improvisação; segurar o imprevisto; saber contracenar com o público; ter senso de ritmo, do efeito que utiliza o sentido do cômico; saber mudar rapidamente de roupa e de maquiagem, de personalidade.

Todas essas qualidades que acabo de expor, propostas por Aslan (1994), são também pertinentes ao processo de criação das encenações do Grupo Teatro Griô, à exceção da qualidade de saber mudar rapidamente de maquiagem, que não são imprescindíveis, uma vez que assumimos um personagem narrador que irá transitar entre diversos enredos e até a caracterização de diversos personagens das narrativas. Ele não precisa, necessariamente, mudar sua maquiagem, pois os personagens podem ser simplesmente esboçados a partir de expressões vocais características, ou da utilização de um fragmento de figurino, uma mudança no gestual, no ritmo, no deslocamento em cena, dentre outros elementos que podem ser utilizados sozinhos ou combinados entre si, a partir do jogo que se estabelece no desempenho do ator ao alinhavar a encenação das distintas tramas.

O circo no Brasil manteve uma estreita ligação com o teatro e solidifica-se através de adaptações teatrais do chamado circo-teatro. “Pelo que sabemos essa modalidade do circo de representar melodramas, de fazer teatro, é uma característica do nosso circo”, segundo Pantano (2007, p. 26). O palhaço brasileiro tem, então, características singulares, que o diferenciam dos palhaços europeus, como a de ser o protagonista dos espetáculos circenses, devido às encenações de melodramas. Atua das mais diversas maneiras, como palhaço propriamente dito e com sua atitude nas cenas de circo-teatro assumindo variados tipos cômicos.

A metodologia por mim desenvolvida no Teatro Griô está mais próxima dos palhaços brasileiros de circo e rua do que dos clowns “europeizados”. Além da já citada maneira genuína com que o palhaço se destacou nos circos-teatros do Brasil, “o palhaço brasileiro, ao criar seu personagem, é despojado. Em sua maioria, eles descrevem seus personagens como ‘alegres’, ‘escrachadas’, ‘moleques’ etc.” (PANTANO, 2007, p. 29). Portanto, segundo Pantano (2007), o palhaço brasileiro mesclou algumas características deste palhaço e criou o seu próprio personagem, distinto do clown europeu de cara branca e com gestos delicados, que não existe mais em nossos circos.

Interessa-me frisar, mais uma vez, a relação do ator com o palhaço em sua expressão mais despojada, repleta de liberdade e subversão, sem esvaziamento do potencial grotesco, como ocorre em clowns que se apropriam do tipo cômico como linguagem desprovida da irreverência do circo e da rua e estão mais próximos de uma concepção que enfatiza apenas a docilidade e fragilidade do palhaço. Esse tipo de visão clownesca, que busca afastar-se do que é popular e muitas vezes “borrado”, aproxima-se mais de uma valorização poética de um ideal de beleza, a qual, ao rejeitar os aspectos mais “baixos” do palhaço, acaba aniquilando o seu lado marginal, ao perder contato com a espontaneidade popular, rude e ligada ao fracasso que justamente deu origem ao palhaço.

Note-se que é possível observar essa irreverência característica dos palhaços brasileiros dos pequenos e médios circos também em muitos palhaços de rua e até de alguns que surgem de uma experiência teatral, mas que não esvaziaram o potencial grotesco de sua composição. É o caso, além do Teatro Griô, de palhaços como André Casaca, Ângela de Castro, Natalie Mentha, Roberto Stamati, Tortel Poltrona, Luís Carlos Vasconcelos e Chacovachi. Nestes, é possível perceber toda a poesia e subversão em composições artísticas que não retiram do palhaço o seu ingrediente tosco e estúpido, ao contrário de uma concepção do palhaço como uma linguagem cheia de formalidades (para não dizer receitas), mais próxima de um ideal aristocrático que procura em muitos momentos afastar o clown do que seria a “grosseria” dos tradicionais palhaços.

O palhaço de tradição brasileira aproxima-se mais do tipo subversivo Augusto, “sua característica básica é a estupidez e se apresenta frequentemente de modo desajeitado, rude e indelicado. No Brasil, encontra-se no termo palhaço o equivalente mais apropriado do Augusto” (BOLOGNESI, 2003, p. 74), afastando-se do tipo oposto ao clown Branco, que tem como característica básica a boa educação, a elegância da tradição aristocrática, e que acabou desaparecendo de nossos circos e companhias cômicas populares. O palhaço brasileiro assimilou alguns aspectos do Branco e compôs um Augusto repleto de dualidade ao agregar num mesmo palhaço, ao mesmo tempo, a estupidez e a astúcia, a ingenuidade e a sagacidade, a tolice e a esperteza, a subversão à ordem e a vitória ao fracassar. Esse é um tipo de palhaço que aponta uma associação com o povo brasileiro, sendo muito bem representado em tipos como João Grilo, Pedro Malazartes, e o próprio anti-herói advindo da tradição africana, Ananse, que tece suas artimanhas para sobreviver diante da injustiça social.

O palhaço nos ajuda a perceber a importância de viver o momento presente. Aponta para o fato de que o melhor de um processo criativo é o próprio trajeto, assim como o valor de uma trilha é o próprio percurso. A admitir nossas imperfeições, sem precisar perder a alegria, e a aproveitar a vulnerável condição de ser humano como algo repleto de simplicidade, humor e poesia. O palhaço é dono de uma esperteza que não esvazia o potencial de ternura, ao buscar o revide a partir do riso, muitas vezes da capacidade de rir de si mesmo e encontrar no risco, no erro e na derrota a possibilidade de ser feliz.

 

 

Nota:

 

* “Os palhaços que atuam nos circos-teatros, ao representar comédias ou dramas, caracterizam-se diferentemente da personagem/palhaço, criando assim um tipo, uma outra personagem”. (PANTANO, 2007, p. 26).

 

REFERÊNCIAS:

 

ASLAN, Odette. O Ator no Século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994.

 

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003.

 

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.

 

CASTRO, Angela de. A Arte da bobagem-Manual para o clown moderno. Londres: The Why Not Institut, 1997.

 

SOUZA, Rafael Morais de. Na Teia de Ananse: um griot no teatro e sua trama de narrativas de matriz africana.  Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011.

 

PANTANO, Andréia Aparecida. A Personagem Palhaço. São Paulo: UNESP, 2007.

 

Por: Rafael Morais

Publicado em: Revista Diversos Afins, entre caminhos e palavras. 04/2012

 

É muito interessante a relação entre o nome deste caderno, “Jogo de Cena”, com o tema que abordaremos em sua estreia: a Improvisação Teatral. Antes de tudo, pensei em um tema que estivesse presente em tudo que realizamos no teatro, assim como o próprio jogo, inerente à atividade teatral. A improvisação tem papel relevante em todos os meus processos criativos e de formação artística. Interage tanto com o ofício do ator, quanto com o do contador de histórias, palhaço e o teatro de rua, destaques estéticos do Teatro Griô, grupo do qual sou um dos fundadores e coordenador artístico.

A improvisação existe como elemento implícito em qualquer ato teatral, mesmo num teatro que pretende formalizar o seu resultado como uma criação acabada e previamente elaborada, que objetiva uma forma final (produto acabado) fechada ao improviso. Nestes casos, a improvisação deixa de existir apenas aparentemente, permanecendo submersa, pois a arte teatral por si só é improvisacional. O ato de improvisar no teatro, entretanto, não deve ser confundido com a atitude de realização com pouco ou nenhum preparo prévio.

Julgo importante frisar que a improvisação, além de ser inerente ao teatro, ela, justamente, origina o próprio teatro e tem se desenvolvido desde os primórdios do fazer teatral. Mas, em muitos momentos do percurso do teatro através dos tempos, a improvisação descreve um percurso dinâmico que vai desde a condição de primeiro e único recurso, tornando-se posteriormente a se constituir uma atividade subliminar, até chegar a ser um elemento autônomo de expressão, de forte relevo em determinadas manifestações teatrais.

A improvisação teatral, segundo Sandra Chacra, importante estudiosa do tema, não encontra um espaço privilegiado nos registros escritos do chamado teatro tradicional, sobretudo o de base literária, não sendo, portanto, as fontes históricas sobre a improvisação teatral, referências sustentadas em fundamento textual mais amplo. As formas e os meios de improvisar no teatro foram se desenvolvendo de forma subterrânea, juntamente com um fazer mais ligado ao teatro popular, desde as épocas primitivas, perdurando como manifestação até o presente. Desde as representações dionisíacas, precursoras da cena formal, além da estrutura ritual, comportavam uma série de expressões mimo-dramáticas improvisadas. “A Improvisação é a raiz, não somente da tragédia, como também da comédia”. (CHACRA, 1983, p. 24-25).

Desde a antiguidade, a improvisação existe como uma forma de transmissão a partir de aspectos ligados à oralidade, como elemento de destaque de determinadas formas de espetáculo muitas vezes originadas de experiências ligadas ao teatro mais popular. Não dá para realizar, neste artigo, um estudo panorâmico da improvisação teatral ao longo da história*, no entanto, gostaria de chamar atenção aqui para esse fio que segue subterraneamente através dos tempos, o que a aproxima muito de uma forma de sobrevivência e disseminação inerente à tradição oral, como foi o caso de sua presença tanto nos primórdios das farsas atelanas, que improvisavam com tipos determinados em que se pode reconhecer os progenitores das futuras máscaras italianas da commedia dell’arte, passando pelos saltimbancos, bufões, acrobatas, prestidigitadores, charlatães e outros, que representavam all’ improviso nas praças e feiras desde os primórdios da Idade Média. “Da mesma forma, a improvisação também está presente nas festas medievais, como a ‘Festa dos Reis’, o ‘Carnaval’, a ‘Festa dos Loucos’ e outras.” (CHACRA, 1983, p. 29).

Após o desaparecimento da commedia dell´arte, a improvisação continua a manter-se no decorrer do século XIX em espetáculos marcadamente populares como a pantomima, o circo, o teatro de variedades (music-hall, cabarés). O próprio Stanislavski, preocupado com uma representação mais sincera e verdadeira, propõe ao ator uma preparação através da improvisação. Meyerhold, por sua vez, integra o improviso no próprio espetáculo, seja para estabelecer traços estilísticos, seja para comunicar aspectos sócio políticos. Artaud, dentre seus objetivos, tem o de tornar o teatro uma “linguagem da improvisação” e chega a pensar num teatro cuja peça seja composta diretamente em cena. Gordon Craig e Jaques Copeau, entre outros, valorizam o espetáculo, a atuação, o jogo cênico, o gesto, a expressão corporal e vão beber na mesma fonte em que nasce o espírito da improvisação teatral.

De um modo geral, todos os encenadores do teatro moderno se valem da improvisação num grau maior ou menor, seja na preparação ou durante os espetáculos, como o chamado “Teatro Participação” **, e grupos como o Living Theater, Open Theater, Bread and Puppet, dentre outros, sem esquecer os brasileiros que recorrem à improvisação como linguagem de destaque, tais como Augusto Boal, com o “Teatro do Oprimido”, e José Celso Martinez Corrêa, com o “Te-ato”, os quais consideram que o fenômeno teatral nasce e se concentra quase exclusivamente na co-autoria ator-público.

Na prática por nós desenvolvida no Teatro Griô, por exemplo, a improvisação teatral integra tanto os ensaios quanto o momento da apresentação, através de estratégias diversas. A arte do improviso auxilia e dá suporte à criação cênica, apresentando possibilidades de interação com a plateia. Os elementos criados em meus processos criativos a partir da improvisação estão apoiados na própria prática de ator, professor de teatro e preparador de elenco, utilizando ainda experiência como especialista nas técnicas de palhaço e contador de histórias. Parte de inspirações diversas, como palavras, imagens, manipulação de objetos, jogos e estratégias de improvisação tanto para a criação do texto quanto da encenação.

A arte de narrar histórias, elemento-chave de nosso fazer teatral, tem, também, forte marca de improvisação. A própria relação com a oralidade confere à arte do cronista oral muita aproximação com elementos ligados à improvisação teatral. Não tenho como objetivo, no processo criativo de encenação de histórias, “decorar” a narrativa de maneira convencional, numa forma fechada, mas trabalhá-la como uma trama, um fio narrativo entrelaçado com fatos fundamentais, imagens, emoções, atmosferas, conflitos, desenlaces que se organizam de maneira a estabelecer o percurso narrativo desejado. De modo alusivo, o griot tradicional do contexto africano também assume a improvisação no tratamento dado a uma trama narrativa tradicional:

 
Uma narrativa tradicional possui sempre uma trama ou base imutável que não deve jamais ser modificada, mas, a partir da qual, pode-se acrescentar desenvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiração ou a atenção dos ouvintes. (HAMPÂTÉ BÂ, 1982, p. 192).

Ao visualizar esta trama, com as muitas imagens que ela implica, o ator-griot*** improvisa o seu texto apoiado na cena da oralidade. Isso não quer dizer que ele irá inventar tudo na hora, ou que não tenha preparo prévio, mas, muito pelo contrário, o preparo para este tipo de desempenho é imprescindível. A improvisação, neste caso, além de ser elemento chave na concepção da cena, é também destaque no momento da encenação, uma vez que este ator estabelecerá um contato mais direto com a plateia, a qual em determinados momentos poderá até participar como co-criadora da cena, resultando, por conseguinte, em uma maior abertura para a realização de uma atuação improvisada.

Nesta experiência em que o ator contracena diretamente com a plateia, ele vai naturalmente ajustando sua atuação (texto, estratégias, ritmo etc.) em resposta aos espectadores e ao momento. Tem a liberdade de, no andamento da cena, caso ele mesmo julgue pertinente, simplesmente fazer como tinha planejado nos ensaios, ou adaptá-la, suprimir alguma parte, acrescentar outra, interromper em determinado ponto a narrativa e realizar um jogo de animação da plateia, para logo a seguir retomar a narrativa de onde havia parado.

As tramas, no contexto de meus processos criativos junto ao Teatro Griô, diferentemente das histórias simplesmente narradas, estimulam a criação de diversas estratégias de transposição da narrativa para a cena e criação de personagens, inclusive do próprio personagem narrador. Também permite ao ator-griot interagir diretamente com o público num ato de desvendamento de sua própria personalidade de forma poética, a partir da encenação dos mitos e contos populares e das narrativas criadas da sua própria memória, bem como dos jogos de interação com a plateia.

A improvisação acaba por alinhavar um tecido que sustenta o próprio jogo teatral, principalmente numa metodologia como a do Teatro Griô, que privilegia a cena do ator em comunhão com elementos técnicos e estéticos do palhaço, contador de histórias e teatro de rua, dentre os quais a improvisação é elemento-chave na composição cênica em todas as etapas do processo criativo.

Não é possível vivenciar o transitório jogo da cena teatral sem praticar a arte de improvisar. O ator sabe que é preciso re-viver a cada espetáculo, a cada encontro com o público, o jogo efêmero do teatro, onde, apesar da busca da repetição, daquilo que foi perseguido nos ensaios, é impossível se fechar ao novo. E, caso esta experiência se cristalizasse, numa forma fria e acabada, tornar-se-ia sem vida. Morreria o jogo. Deixaria de ser teatro.

 

 

Notas:

 

Além de Chacra (1983), “Natureza e Sentido da Improvisação Teatral”, e da obra de Viola Spolin (1979), destacando-se o título “Improvisação Para o Teatro”, uma visão panorâmica do percurso da improvisação no teatro, pode ser vislumbrada, de forma implícita, ao analisar muitas obras sobre o teatro, como por exemplo, “O Parto de Godot” de Luis Fernando Ramos (1999), no capítulo 1, que aborda a história da rubrica, e o histórico sobre o non sense na história do teatro composto por Martin Esslin (1968), no seu “O Teatro do Absurdo”, capítulo 1: o absurdo do absurdo. Claro que, ao contrário de Chacra, os outros dois trabalhos dos autores citados não tratam explicitamente de improvisação teatral, mas, ao tratar da história da rubrica, ou do percurso do non sense, eles acabam permitindo agregar dados, de forma panorâmica num mesmo capítulo, a essa possível reconstituição de um fio imaginário de um percurso da tradição oral da improvisação teatral. Isso sem contar com a análise de obras específicas da História do Teatro.
 

 

** Notadamente o dos anos sessenta, realizado nos Estados Unidos, também conhecido, além de “Teatro Participação”, com os nomes de “teatro experimental”, “teatro em processo”, “teatro de contestação” ou “teatro improvisado”. Tratam-se na verdade de diferentes tipos de “participação”, na qual podem ser englobados, por terem todos, em comum, alguma participação “ativa” do espectador e ser a improvisação a base de seus trabalhos.
 

 

*** Utilizo o termo ator-griot, para designar o ator que cria um personagem narrador, inspirado poeticamente em narradores tradicionais do noroeste da África, denominados griots, que têm a função de alinhavar as narrativas encenadas, inclusive as narrativas criadas a partir da experiência de vida do próprio ator. A utilização do termo ator-griot foi de grande valia para facilitar a compreensão da especificidade de atitude deste ator, como concebido na pesquisa realizada por mim no âmbito do PPGAC – Programa de Pós-Graduação em Artes Cenicas – UFBA, e, para auxiliar no entendimento do que foi exposto no cotejamento com os procedimentos assumidos por tradicionais encenadores do teatro. Caso haja interesse numa maior compreensão do termo e, consequentemente, do processo criativo integrante da pesquisa, no qual se constituiu da criação e encenação de uma trama de narrativas inspiradas nos griots, pode-se consultar a Dissertação (citada nas referências ao fim deste artigo), onde foram tecidas determinadas especificidades a respeito do desempenho deste ator-griot.
 

 

REFERÊNCIAS:

 

CHACRA, Sandra. Natureza e Sentido da Improvisação Teatral. São Paulo: Perspectiva, 1983.

 

ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968.

 

HAMPÂTÉ BÂ, AmadouA Tradição Viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História Geral da África Vol. I. São Paulo: Ática/Unesco, 1982.

 

RAMOS, Luiz Fernando. O parto de Godot e outras encenações imaginárias: a rubrica como poética da cena. São Paulo: Hucitec, 1999.

 

SOUZA, Rafael Morais de. Na Teia de Ananse: um griot no teatro e sua trama de narrativas de matriz africana. Orientadora: Profª. Drª. Hebe Alves da Silva. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011.

 

SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1979.

 

CICI: A ARTE DE VIVER O MITO

Por: Rafael Morais e Hebe Alves

Disponível em: Revista Repertório do PPCAG UFBA, ano 22, n.33, p. 209-223, 2019.2

RESUMO
Trata-se de uma perspectiva sobre a mestra da arte de narrar histórias, pesquisadora, ebome do
candomblé e apetebi do culto de Ifá, vovó Cici. Traça um panorama de sua vida como narradora
a partir da vivência com os mitos. São compartilhadas reflexões advindas da simbologia e do
contexto social, político e religioso que envolve o mito. Traz referências do contato de Cici com
o etnólogo e babalaô Pierre Fatumbi Verger e recorre a algumas referências de Hampâté Bâ. O
texto revela o olhar do artista e pesquisador Rafael Morais sobre a mestra Cici, ressaltando o valor
de uma narradora que é capaz de viver o mito em todas as suas nuances e tem domínio pleno da
arte da palavra narrada. Partilha exemplos diversos sobre o saber de tradição oral, apoiado em
reflexões a partir de vivências e processos criativos junto à Companhia Teatro Griô. Compartilha,
ainda, uma história pouco difundida da cultura afro-brasileira, pelas próprias palavras usadas pela
mestra Cici, como exemplo de sua maneira de passar ensinamentos através do mito.

Palavras-chave: Vovó Cici. Tradição oral. Arte de narrar histórias. Vivência. Mitologia afro-brasileira

 

“Cici, são apenas quatro letras!”. Assim gosta
de se apresentar a notável mestra narradora vovó Cici, conhecida no âmbito religioso como ebome Cici. Com o nome de nascimento Nancy de Souza e Silva, ela
prefere resumir toda a sua experiência de pesquisadora da cultura afro-brasileira
e africana, de sacerdotisa do candomblé, de apetebi iniciada nos cultos de Ifá,
de educadora e de escritora, simplesmente como uma contadora de histórias.
Dona Cici nasceu em 2 de novembro de 1939 no Rio de Janeiro. Sua família paterna era de Cachoeiro do Itapemirim, Espírito Santo, e seus parentes maternos de
Rocha Leão, interior do Rio de Janeiro. Sua mãe, Dulce Coelho, trabalhava como
copeira na pensão da avó Mariana Rosa da Conceição. A família do pai de Cici era
dona de uma pensão de estudantes e uma tia de Cici trabalhava na casa de uma
família alemã, de sobrenome Mayer, que morava no bairro de Santa Teresa, nos
anos de 1940, e tinha duas crianças. A tia a levava ao trabalho todos os dias e,
assim, a menina Cici passava a maior parte do tempo convivendo com as crianças
alemãs Johannes e Peter. Cici contou-me que os meninos eram um pouquinho
mais velhos que ela, mas os três eram tão unidos que não dava nem para perceber
as diferenças étnicas entre eles. Por essa razão, quando Cici chegou à escola,
já sabia falar e ler alemão, e as primeiras histórias aprendidas por ela foram de
origem alemã, histórias de tradição oral compiladas e difundidas pelos irmãos
Grimm, como João e Maria e Branca de Neve.
arte de la palabra narrada. Comparte ejemplos diversos sobre el saber de tradición oral, apoyado
en reflexiones a partir de vivencias y procesos creativos junto a la Compañía Teatro Griô. Además
presenta una historia poco difundida de la cultura afro-brasileira, en las propias palabras usadas
por la maestra Cici, como ejemplo de su manera de pasar enseñanzas a través del mito.
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Foi mais tarde, ao encontrar aquela que tinha sido a babá de seu pai, chamada
Ziza, Cici escutou a primeira história que tocou fundo em sua alma. Logo percebeu algo diferente na história narrada por aquela senhora negra. Um conto de
bicho, entremeado por uma cantiga, num idioma até então desconhecido de Cici.
Era uma história de origem congolesa, uma história afro-brasileira. Cici gosta de
narrá-la até hoje, encantando crianças e adultos.
Quando Cici tinha 18 anos, sua mãe deu à luz uma menina e, um ano e meio depois,
deu à luz a mais um menino. Então, sua mãe a chamou e lhe trouxe o seguinte
desafio: “Eu tenho que trabalhar para garantir o nosso sustento. Preciso de sua
ajuda: ou você toma conta de seus irmãos, ou eu venho dar atenção a eles e
você cuida dos negócios com a pensão”. Cici conta que preferiu cuidar das duas
crianças. Ela avalia que esse foi o seu chamado para que se tornasse a contadora
de histórias que é hoje. Constitui-se atualmente como uma verdadeira mestra da
palavra, que tem consciência do seu poder de transformação na vida das pessoas
que a escutam, em consonância com os saberes advindos das tradições orais
de matriz africana.
As tradições orais africanas criam um laço misterioso, sagrado e profundo que
liga o ser humano à palavra. Nesse contexto, portanto, a palavra é tomada como
testemunho daquilo que a pessoa é. No âmbito da tradição oral, a palavra tem
um papel fundamental no desenvolvimento da vida social; a função da memória
é valorizada e mais desenvolvida; a ligação com a palavra é mais forte; o homem
está mais comprometido com sua fala. A palavra adquire um lugar de honra. Nas
tradições orais africanas, a palavra não é utilizada de maneira imprudente, pois
é portadora de “forças misteriosas”, exerce um papel de agente mágico. Como
atesta Amadou Hampâté Bâ (1982, p. 182), “A palavra falada se empossa, além
de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado vinculado à sua origem
divina e às forças ocultas nela depositadas”.
Cici dedica-se cotidianamente aos meninos e meninas atendidos pela Fundação
Pierre Verger,1
onde ela trabalha de segunda a sábado. Porém, Cici encontra disposição, apesar de seus 80 anos, para contar histórias em muitas instituições, como
universidades, teatros, museus, festas literárias, bibliotecas, escolas e terreiros, na
Bahia, em outros estados brasileiros e em diversos países. Segue adiante como
1 A fundação foi criada
por Pierre Verger em 1988,
no bairro do Engenho Velho
de Brotas, em Salvador.
Funciona na mesma casa
em que Pierre Verger viveu
durante anos, na Ladeira da
Vila América.
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uma guardiã do legado de Pierre Fatumbi Verger, etnólogo e fotógrafo francês,
babalaô muito importante para o candomblé e para a difusão e o respeito à cultura
afro-brasileira. Cici refere-se a Pierre Verger como “meu pai Fatumbi” e conta: “Se
não fosse o meu pai Fatumbi, eu não saberia o que eu sei contar hoje. A palavra
‘Fatumbi’ indica que seu portador não nasceu lá. Toda pessoa que tem no nome
iorubá a palavra ‘otum’, significa que ela não nasceu lá, que nasceu em outro lugar.
Quer dizer, ele é de lá, mas não nasceu lá. (I)Fa-(o)tum-bi. Às vezes, a gente diz
renascido para Ifá. Mas é filho de Ifá que nasceu em outro lado, em outro lugar”.
O “babalaô”, traduzido literalmente do idioma iorubá, significa o “pai do segredo”,
e é sacerdote do culto de Orumilá-Ifá, o Senhor da Adivinhação. Os babalaôs são
a autoridade máxima do culto de Ifá. Cici trabalhou como assistente de Verger,
catalogando e legendando 11 mil fotografias, convivendo com seus ensinamentos,
histórias e pesquisas. Ela guarda em sua memória, com muito carinho e gratidão,
muitos ensinamentos de sua convivência com Verger, a quem gosta de pedir a
licença e proteção, juntamente aos babalaôs, aos griôs e aos ancestrais, antes
de qualquer atividade de narração de histórias.
Narrar histórias, para Cici, não é simplesmente compartilhar informações de enredos ou puro entretenimento, mas um momento profundo de encontro com o
sagrado, de plenitude. É, antes de tudo, uma missão. Ela conhece toda a simbologia e o contexto social, político e religioso que envolve o mito. Apesar disso, a
experiência de escutar vovó Cici narrar história não é simplesmente algo didático.
É uma espécie de encantamento. Um encontro com a vivência do mito que não é
somente intelectual. O poder da história passa à frente, e tem qualquer coisa que
a mantém acima e além do cotidiano. Quando escutamos Cici contar a história,
somos tragados para a vivência das imagens da narrativa.
Quando narra histórias para pessoas de todas as idades, Cici pode abarcar de
atmosferas sutis de encantamento até a mais plena consciência crítica a respeito da vida ou da morte. Não tem receio de aprofundar nas imagens da narrativa
seus aspectos sombrios e ambíguos. Seu corpo, frágil no cotidiano, dilata-se ao
dar voz a guerreiros implacáveis ou a deusas transbordantes de sedução. Seus
movimentos precisos conseguem exprimir pavor, horror ou êxtase e a mais sublime alegria. Seu corpo, sua voz e seu olhar moldam-se como uma matéria-prima
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fluida, plenamente a serviço da expressão da história. Seu repertório é vasto, pois
reúne histórias de ensinamento, ligadas ao repertório dos babalaôs e do culto de
Ifá, histórias de orixás, histórias de bichos e histórias de espíritos encantados,
além de muitos causos compostos a partir de sua própria vivência e também dos
encontros nos quais ela continua a dialogar e aprender constantemente.
A tradição oral, segundo Hampâté Bâ (1982, p. 187), baseia-se em certa concepção da vida que pode causar estranhamento à mentalidade cartesiana, acostumada a separar tudo em categorias bem definidas, pois “A tradição africana não corta
a vida em fatias e raramente o ‘Conhecedor’ é um ‘especialista’. Na maioria das
vezes, é um ‘generalizador’” e seus conhecimentos consecutivamente beneficiam
um uso prático. A tradição oral tem a sua cadeia de transmissão, e seus elos são
os tradicionalistas, mestres e narradores tradicionais que, a depender da região
e tradições específicas, assumem diversas atribuições e maneiras particulares
de exercer sua função. Os chamados “tradicionalistas” são as testemunhas da
memória viva da África, os depositários da herança da tradição oral. Para ele, a
tradição oral é a grande escola da vida, dotada de uma palavra viva, a qual envolve
simultaneamente as crenças, as ciências, as artes, a história, as brincadeiras, o
jogo, tudo isso continuamente a nos remeter à “unidade primordial”; uma tradição,
fundada na iniciação e na experiência, que transmite conhecimentos e na qual o
espiritual e o material não estão dissociados.

Bâ afiança que a tradição não tem uma concepção abstrata que se isole da vida,
pois esta se liga ao comportamento cotidiano do homem: “ela envolve uma visão
particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um
mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se ligam e interagem”.
(BÂ, 1982, p. 183) Os “tradicionalistas” podem ser chamados por muitos nomes, a
depender da região e, consequentemente, da língua. Em bambara, são chamados
de doma ou soma, os “conhecedores”, ou donikeba, “fazedores de conhecimento”.
Já para os fulas, de silatigui, gando ou thiorinki, que, segundo Hampâté Bâ (1982),
possuem o mesmo sentido de “ onhecedor”. Cici é o que poderíamos chamar de
uma mestra conhecedora.
Sinto-me à vontade para partilhar, aqui neste texto, algumas considerações sobre a grande mestra que Cici é, recorrendo para isso à memória de testemunhos
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dados a mim num contato continuado com essa mestra junto à companhia Teatro
Griô. A partir da vivência com Cici, pela convivência e pela trilha de aprendizado
profundo na qual ela nos conduz, nessa caminhada de cumplicidade e respeito,
posso afirmar que Cici é detentora de um saber vivo. Desvenda o mundo à sua
volta e desvela o maravilhoso que existe dentro de si mesma e de seus semelhantes. A própria Cici é uma exímia pesquisadora e curiosa; consegue decifrar
os segredos das folhas, das palavras, dos nomes das pessoas, das cidades, dos
bichos, os segredos submersos nas histórias. Ao nos dar a mão numa caminhada,
seja recebendo-nos em sua casa ou entrando em nosso lar, Cici vai interpretando o mundo à nossa volta e, magicamente, nos convida a entrar em seu mundo,
por meio do seu olhar, fazendo-nos também enxergar e ler a realidade de uma
maneira diferente, como uma guia do âmbito das imagens que antes estavam
veladas, submersas, embaçadas.
Cici sabe contar as histórias das plantas, dos deuses, dos animais, dos humanos
e de outros seres viventes na natureza. Uma dessas vertentes, por exemplo, é o
conjunto de histórias por trás de cada comida oferecida aos orixás. Tive a alegria
de aprender com Cici a cozinhar essas comidas e, durante todo o processo de
preparo dos ingredientes e de cozimento dos alimentos, escutar a história de
cada uma delas, de sua origem e muitas curiosidades que me fizeram compreender melhor não somente o contexto da cultura afro-brasileira, mas a sociedade
baiana como um todo. Cici reuniu essas histórias no livro Cozinhando histórias,
editado pela Fundação Pierre Verger. Ainda pude, em muitas ocasiões, escutar
dela as histórias de inúmeras cantigas, acompanhadas das explicações dos ritmos
e do sentido por trás de cada uma delas, das danças, das roupas, penteados e
pinturas. Assim, confirmei, mais uma vez, que as histórias, além de narradas por
palavras, podem ser contempladas e lidas através de todos os nossos sentidos.
Uma experiência intraduzível é ter a oportunidade de escutar Cici decifrando
através das imagens uma fotografia, ou mesmo uma paisagem vista do carro a
caminho do teatro.
Certa vez, no processo criativo de um de nossos espetáculos da companhia
Teatro Griô, dos quais Cici integrou por algumas vezes o elenco, ela me escutou
narrar uma história que não existe publicada em nenhum livro, segundo o meu
conhecimento e dos pesquisadores com os quais mantenho constante diálogo.
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Recebi a história de presente de uma senhora de uma comunidade rural a qual
visitei, que quis demonstrar sua gratidão por ter participado de uma de minhas
oficinas da arte de narrar histórias. Aquela senhora havia escutado a história de
sua bisavó, natural do Recôncavo Baiano. Ao escutar de mim aquela história, Cici
pediu-me que não lhe desse nenhuma referência sobre o conto. Simplesmente,
pelos nomes dos personagens, pela trama, pelo estilo da narrativa, decifrou de
maneira bastante coerente a origem da história, dando uma verdadeira aula sobre
as distintas etnias que constituíram a diáspora negra em território baiano e sobre
o seu valioso legado para a nossa formação. Naquele instante, eu confirmei mais
uma vez que uma coisa é ler, escutar, estudar ou aprender uma história. Outra
coisa é viver o mito. Cici vive plenamente os mitos.
Cici é como uma espécie de museu vivo da cultura afro-brasileira e, assim como
outra importante mestra com quem tive a oportunidade de conviver e aprender
muito, a saudosa escritora e ialorixá Mãe Beata de Yemonjá, pude presenciar
serem elas reconhecidas por outros mestres conhecedores, mesmo antes de
serem apresentadas, pela sua simples presença, onde quer que vão, em restaurantes, aeroportos, teatros e centros culturais. Figuras como Cici e Beata de
Yemonjá são donas de uma presença imanente que se irradia onde quer que
estejam, mesmo longe do âmbito religioso ou artístico. Presenças que ensinam
e encantam pela convivência, pelo que simplesmente são. Pessoas donas de
uma imensa humildade e discrição que, como um imã, atraem o olhar, chamam
a nossa atenção. Sempre que estive com Beata, ou sempre que estou com Cici,
lembro de um ditado sufi: “Só é verdadeiramente seu aquilo que pode sobreviver
a um naufrágio”.
Para Cici as histórias vêm do céu e chegam até nós através dos sonhos, brincadeiras, situações da vida, livros, conversas, contemplação da natureza, das inspirações dos encantados e, principalmente, da palavra dos contadores de histórias.
Ela está sempre ensinando e aprendendo através das histórias. Aprende com
as crianças, os adultos, os outros velhos e sempre está disposta a compartilhar
aquilo que assimila.
Desde que escutei Cici pela primeira vez, fui tomado de profunda admiração. Já
faz aproximadamente duas décadas, mas o entusiasmo só cresce, o que talvez
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torne difícil apresentá-la a quem não a conhece, pois pode parecer que faço elogios na tentativa de descrevê-la. Porém, aprendi com alguns mestres de tradição
oral, dentre os quais a própria Cici, a não mentir num depoimento, a buscar uma
palavra coerente com as minhas convicções, com o que acredito.
Quando Cici me escutou narrar histórias pela primeira vez, senti-me profundamente honrado com a sua generosa escuta. E qual não foi a minha surpresa ao
ouvir seu entusiasmado retorno, visto que ela dominava, além do âmbito da tradição oral, também as diversas competências e técnicas que eu havia acabado
de utilizar na apresentação do espetáculo de narração de histórias. Cici tem um
senso crítico dos elementos da cena. Tem consciência dos recursos estéticos
do meu ofício de ator e pessoa de teatro e estabeleceu um diálogo sofisticado
sobre as escolhas de meu processo criativo a partir da apreciação estética do que
tinha acabado de assistir. Desde então, passou a ter lugar de honra não apenas
em minha plateia nas estreias, mas nos ensaios abertos e consultorias em meus
processos criativos; também, em algumas ocasiões, dividindo a cena comigo e
os demais artistas do Teatro Griô, o que, para todos nós, é um grande privilégio.
Enquanto escrevia este texto, escolhi uma das inúmeras histórias que ela já me
contou e pedi a Cici que narrasse mais uma vez para que eu pudesse compartilhar
aqui. E como um exemplo da maneira como Cici vai desfiando seus ensinamentos,
escrevi no box abaixo, com as próprias palavras que ela narrou para mim:
CICI: Na minha cultura, existe um monte de tabus. Alguns tabus
até criados pelas próprias pessoas, de não querer contar ou
cantar certas histórias. E essa história que eu gosto de contar é tabu. Eles não gostam nem de contar e nem de cantar.
Então, nem todas as pessoas de candomblé conhecem essa
história. De fato, algumas conhecem as sociedades das quais
nós vamos falar nessa história, e somente praticamente as
pessoas que participam do culto de Babá Egungun que conhecem essa cantiga que eu conto na história, porque o repertório de cantigas que se cantam no culto aos mortos são
cantigas para o espírito, não é?! Nós fazemos uma diferença
bem grande: tem o espírito e tem o corpo.
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Dentro da minha cultura, os mais velhos, diziam, do meu
tempo pra trás, que, quando alguém morria, seu espírito
ficava pela Terra por uns sete dias. Por isso, quem tem o
conhecimento e condições financeiras, a depender do seu
parente que falece naquele momento, o tempo de feitura
será equivalente aos dias de festa, e, ou então para alguém
que já faleceu, quando se fazem essas cerimônias, se cantam cantigas para o espírito daquela pessoa, depois cantamos cantigas para os orixás daquela pessoa. Porque o espírito, todo mundo sabe, é imortal.
Nem todo mundo está preparado na vida para morrer;
eu mesma não estou. Eu tenho um medo da morte, que é
uma coisa triste. E o meu destino, o odu do meu destino, é
a morte, é iku. Eu mooorro de medo. Então, as cantigas do
espírito, para que a gente se conforme com essa nova etapa da vida, é que são pouco conhecidas das pessoas. Um
exemplo é essa história e essa cantiga. Nem todo mundo
conhece. É, digamos, só um grupo de elite do candomblé,
porque eles não gostam de passar todos os conhecimentos
ou todas as coisas. Não estou falando de fundamentos, eu
estou falando de tradição, do cotidiano. Meu pai Fatumbi me
ensinou contar histórias da minha cultura; elas abrangem o
social, o político e o religioso. Dentro do candomblé, só ficou,
na realidade, o religioso.
Então, eu gosto de contar essa história e eu acho que todo
mundo tem o direito de conhecer e saber. A história, ela não
é propriedade de uma pessoa. A história é propriedade do
mundo inteiro. O mundo é uma grande mistura, e quantas
histórias que a gente conta que as pessoas se encontram
nela?! E eu tenho saído daqui, ido para outros países: eu
contar a história, ser traduzida e as pessoas ainda choram
quando eu conto a história. Viu?! E eu digo a você que são
pessoas, entre aspas, de culturas diferentes. A cultura, a
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etno, pode ser diferente, mas a temática, as coisas que se
passam são uma só: o riso, a alegria, a tristeza, a lágrima; é
para qualquer pessoa, seja ela verde, amarela, azul ou roxa,
ou lá a cor que tiver, ou a língua que ela fala: o sofrimento é
um só. Então, a gente também se emociona com as histórias dos outros, de outros grupos, de outras etnias, porque a
história tem esse dom. De fazer a gente… A história é mágica, uma história tem esse dom da gente estar aqui, mas ela é
capaz de levar a gente a ser um personagem da história que
a gente conta e, na mesma hora, a gente se transformar neles, não é?! Quando você conta uma história, quando vocês
da Companhia Teatro Griô narram uma história, fazem um
personagem, é muito interessante.
Eu lembrei hoje, de você, Tânia, Clarinha, e as outras e outros
contadores do seu grupo contando as histórias, me emocionei. Você pode fazer uma apresentação aqui antes do ano
terminar? Olha, a história, ela vai em várias bocas. A história
deixa características, não é?! Também pelas memórias.
Então, através da sensibilidade, da memória, a gente vai
guardando as situações que acontecem. Então, veja bem
na história que eu vou lhe contar, é a consciência humana. O
que é consciência humana? É quando a gente traz, de alguma forma, as histórias que a gente aprendeu com os nossos
ancestrais. Eu canso de dizer, muitos deles “não sabiam fazer
um ‘o’ com o copo”. Mas tinham a memória. A cabeça. O ori.
[Canta]: “Orixá Ori, Ori, Orixá. È de lerequè. Orixá Ori. Ori Orixá.
È de lerequè”. O primeiro orixá que nasce é ori, a cabeça. A
cabeça é o mundo do ser humano. Porque, dentro da cabeça,
cabem todas as coisas. Então, a gente, quando conta uma
história, a gente guarda o respeito aos nossos ancestrais.
E essa história que você escolheu para contar no seu trabalho do doutorado é muito interessante, a história de três
jovens que conseguem ingressar na universidade. Um vai
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para a faculdade de Direito, torna-se advogado. O outro vai
para a faculdade de Agronomia, para conhecer a terra, as
plantações, a cultura. O terceiro, ele vai para a universidade
aprender biologia, botânica, aprender o segredo das folhas.
Então, esses três jovens se formam e, finalmente, recebem
seus diplomas, os seus anéis. Então, os três jovens colocaram as suas roupas de formando, pegaram seus diplomas e
foram no lugar mais importante da comunidade. Qual é este
lugar? É a feira. É o mercado! A gente aqui chama feira, mas
na África é o mercado.
Então, eles três vão para a feira, o lugar que mais aglomeram pessoas. Então, eles foram chegando e as pessoas foram abrindo alas para eles. E todo mundo olhando com um
olhar bacana para os meninos com os seus diplomas. Eles
entram e, no final da feira, tem um graaannnde pé de iroco.
E nesse pé de iroco, existia um velho griô, e esse velho griô
fica ali contando histórias, histórias e histórias e ajudando
o povo em alguma coisa que ele possa. Então, nesse dia, os
três jovens se dirigem ao velho griô e mostram seus diplomas e dizem: “Senhor, o senhor pode nos abençoar?”. Aí o
velho olha os diplomas.
O velho pensa e os jovens fazem suas apresentações. Então,
o que se forma em Direito pega o diploma e vira para todo
aquele mundaréu de gente, todo o povo está à volta, abre o
diploma e diz: “Senhores, de hoje em diante, quando vocês
tiverem um problema, uma coisa para resolver, não precisa
procurar os adeptos do culto Ògboní, porque eu me formei
em advogado”. Então, o velhinho ouve aquilo e faz assim…
[balança a cabeça para baixo, afirmativamente]. Aí vem o
segundo. Aí vira, faz reverência ao povo e diz: “Senhores,
quando vocês estiverem doentes, não precisa mais procurar as pessoas do culto de Inlé. Porque, eu, eu também sei o
segredo das folhas. Eu também conheço os remédios”. Aí o
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velhinho olhou para ele e fez assim… [balança a cabeça para
baixo, afirmativamente]. E veio o terceiro. O terceiro fez saudações, sempre primeiramente ao velho griô e ao público.
Fez suas saudações e disse: “Senhores, quando vocês precisarem estudar a terra, não precisa mais procurar aqueles
que cultuam orixá Okô, nem Dadá Ajaká. Porque, eu, eu me
formei em Agronomia. Eu, eu estudei os segredos da terra”.
Aí o velho griô agradeceu e disse: “Vou contar uma história a
vocês”. E, então, o velho griô cantou a seguinte cantiga: “Iku
té, ilê, sarê olumbó. Olumbó, sarê ajá. Ajá, sarê okurin. Okurin,
tombé lorum”. Então, quando eles ouviram a cantiga, tomaram a bênção e abaixaram a cabeça para o velho griô e foram
embora. Porque dentro da minha cultura, às vezes, o outro
faz uma coisa e a gente não diz nada, a gente não fala nada, a
gente fica com a boca fechada, entendeu? Você não diz, você
não reprime, você não diz nada, você só canta. Entendeu?
O que foi que o griô disse? Iku té, ilê – ele disse: a morte saiu
para passear. No meio do caminho, achou uma pedra, se
sentou e ficou observando os vivos, e com seu saco bem
junto da sua perna. E observa tudo que estava se passando
naquele dia. Iku té ilê – a morte saiu de sua casa, ficou observando a vida.
Sarê olumbó – Ah, aí veio o rato. E ela tá olhando o rato
desesperado. Todo machucado, e o gato atrás. Ora, o gato
apertava o rabinho, e o bicho tentava se soltar, e ele soltava a
mão e metia as unhas nas costas do rato. E ele foi, e chegou,
e comeu o ratinho. Quando ele tá bem lambendo os bigodes.
Olumbó, sarê ajá – Nisso, veio o cachorro e matou o gato.
Na mesma hora. A morte está observando. Ele vai e mata
o gato. E quando ele está se refastelando, ê vem o homem
dono do gato e mata o cachorro.
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Ajá, sarê okurin – O dono do gato dá uma cacetada no
cachorro e mata. Porque o gato era dele. E aí a morte vê tudo
aquilo e canta: Okurim, tombé lorum – ela mata o homem,
abre o saco, coloca dentro, fecha o saco, bota nas costas e
vem andando e cantando: “Iku té, ilê, sarê olumbó. Olumbó,
sarê ajá. Ajá, sarê okurin. Okurin, tombé lorum”.
Dentro do culto do axexê, é uma das cantigas que a gente
dança para que o espírito saiba se conformar, porque são
fases. Às vezes, a gente é como um rato, que passa a ser um
gato, que também pode ser um cachorro, ou passar a ser
um homem. E a morte leva todo mundo. Rato, gato, cachorro e homem.
Temos convivido com diversos notáveis narradores dos cinco continentes, muitos deles donos de imensa técnica e carisma, mas, em minha opinião, nenhum
deles se compara a Cici. É uma pessoa especial, e eu sinto como uma dádiva da
existência poder viver no mesmo tempo que ela e usufruir de seus ensinamentos.
Num mundo de tanta intolerância, violência, rudeza e desencanto, Cici ajuda-me
a confirmar uma convicção minha de que o encantamento não morreu nos seres
humanos, mas permanece de alguma maneira adormecido, muitas vezes em
estado letárgico. Contudo, em momentos extraordinários como a oportunidade
de ouvir Cici narrar um mito, esse encantamento pode ser acordado, ativado em
cada um de nós.
Cici, antes de narrar um mito de orixá, sempre gosta de lembrar de um texto de
seu pai Fatumbi, que diz que antigamente os orixás eram homens, que se tornaram
orixás por causa de suas virtudes, e as histórias de seus feitos foram transmitidas
de geração em geração para render-lhes homenagens. Muitos homens e mulheres passaram sobre a face da Terra e foram esquecidos. E eu consigo enxergar
em Cici essa força que vem dos seus ancestrais, carregada de muitos símbolos.
Ela mesma encarna muitas virtudes, com sua missão de contadora de histórias,
numa existência digna de ser sempre lembrada, festejada e homenageada.

NOTAS: 1 A fundação foi criada por Pierre Verger em 1988, no bairro do Engenho Velho de Brotas, em Salvador. Funciona na mesma casa em que Pierre Verger viveu durante anos, na Ladeira da Vila América.

REFERÊNCIAS
BÂ, Amadou Hampâté. A tradição viva. In: KI-ZERBO, J. (org.). História geral da Africa, I:
metodologia e pré-história da África. São Paulo: Ática: UNESCO, 1982.
FREGONEZE, Josmara; JESUS, Marlende; SOUZA, Nancy (Cici). Cozinhando história. Salvador:
Fundação Pierre Verger, 2015.
VERGER, Pierre. Lendas africanas dos orixás. Salvador: Fundação Pierre Verger, 2019.
VERGER, Pierre. Orixás: deuses Iorubás na África e no novo mundo. Salvador: Corrupio, 1981.

Rafael Morais: é doutorando, mestre e bacharel em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Pós-graduando em Mitologia Comparada à Psicologia Analítica no Instituto Junguiano da Bahia (IJBA).
Narrador, ator, encenador e professor de Teatro. Coordenador artístico da Companhia Teatro Griô.
Hebe Alves: é professora associada da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente
permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA

 

O palhaço é um perdedor feliz

por: Rafael Morais

Disponível em:  http://www.pecinhaeavovozinha.com.br/rafael-morais-o-palhaco-e-um-perdedor-feliz-producoes-de-alto-nivel-e-um-publico-que-cresce/

Enquanto o ator tem necessidade extrema de acertar, o material de trabalho do palhaço é o erro – e ele é feliz em sua arte de fracassar

É importantíssima a qualquer ator, e, por que não dizer, a qualquer ser humano a sabedoria de rir de si mesmo. Somos, a todo o momento, cobrados a atingir metas, conquistar resultados, a não errar, e, nós, atores, somos muito mais cobrados a acertar, a sermos brilhantes, talentosos, virtuosos. A experiência de estar em cena, diante dos olhares e julgamentos do outro, pode ser dolorosa quando não conseguimos atender às expectativas do público, do diretor, da crítica ou a mais cruel de todas: à nossa própria expectativa. E isto, muitas vezes, pode até nos afastar da maravilhosa experiência de correr riscos.

O ator é uma criatura muito sensível, como diz Shakespeare, é feito da mesma matéria dos sonhos. Os atores podem ter a capacidade camaleônica de vestir a pele de diversos personagens. A competência de vivenciar em cena tramas variadas. De fazer refletir, rir, chorar, satirizar, chocar, fascinar, de causar emoções variadas e intensas. A alquimia de transformar o verbo em carne, a palavra escrita em expressão viva, tendo como matéria-prima o próprio corpo, voz, sentimentos e experiência de vida. No entanto, determinados atores, por vezes, sofrem excessivamente com a possibilidade do acaso, do erro, do julgamento e do fracasso.

A carreira do ator pode ser comparada aos bons vinhos, quanto mais velha melhor. A vivência, o valor da experiência, é o maior tesouro de um ator. Porém, acredito que os atores não precisam sofrer demasiadamente para exercer o seu ofício. Falo principalmente com relação ao julgamento do próprio ator para consigo mesmo. Os próprios períodos excessivos de ensaio são, às vezes, uma tentativa obsessiva de eliminar todo e qualquer risco, erro ou imprevisto. E alguns atores só fazem sacrificar-se, e por vezes acreditam que só pode haver sucesso se houver sofrimento, sem deixar quase nenhum espaço ao prazer de vivenciar o próprio ofício. Neste ponto, a bem da verdade em muitos outros, os atores contemporâneos têm muito o que aprender com outros ilustres artistas da cena: os palhaços.

O palhaço é um perdedor feliz. Enquanto o ator, na atualidade, tem necessidade extrema de acertar, o material de trabalho do palhaço é o erro. E o palhaço é feliz em sua arte de fracassar. Os palhaços revelam de forma dilatada os sentimentos humanos. Percorrem, com sua simplicidade e astúcia, do grotesco ao sublime, do ridículo ao encantamento. O palhaço sabe que, enquanto faz rir, está tocando na sua própria condição humana, imperfeita, falha, tosca, e que é esse o seu material de trabalho.

Um duplo e um amigo. Quero compartilhar com o leitor, mais uma vez, minha experiência própria, o quão precioso foi aprender diversas técnicas de palhaço. O quanto ser um aprendiz de palhaço pode colaborar com o ofício do ator.  O palhaço é como um duplo do artista, um amigo que o acompanha por toda a vida. Poderão mudar as apresentações, o repertório, mas continuará conosco, crescendo com os nossos erros e acertos. Tive a maravilhosa oportunidade de trabalhar, no Brasil e no exterior, com diversos mestres e caminhos de palhaço, sejam da tradição circense, do teatro de rua, dos bufões, e do próprio palhaço do teatro (mais conhecido como clown). Com cada um deles aprendi muito. Porém, gostaria de tratar aqui, especificamente, de uma tradição de palhaço muitas vezes esquecida e desvalorizada, a dos palhaços brasileiros de circo.

O espetáculo circense brasileiro é plural e único, pois, ao longo do seu desenvolvimento, não se ateve apenas às especificidades dos grandes circos de atrações, mas dedicou-se, também, no domínio dos pequenos e médios circos, à apresentação de dramas e comédias, características do denominado circo-teatro, bem como do chamado circo de variedades que busca mesclar as atrações circenses com shows diversos e até peças teatrais. E justamente o palhaço é o protagonista de todas as atrações nesses circos, das comédias ou dramas, shows, peças teatrais, entradas ou esquetes. Nas duas modalidades, seja no circo-teatro ou no de variedades, diferentemente dos grandes circos (onde o palhaço tem o papel de “tapa buracos” enquanto são montados os equipamentos dos grandes números), o palhaço é a figura central dos espetáculos dos pequenos e médios circos.

Essa pluralidade deu ao palhaço brasileiro a oportunidade de desempenhar papéis e funções que o espetáculo clássico europeu desconhecia. Como bem afirma Mario Fernando Bolognesi, autor do livro Palhaços: “Com efeito, no Brasil, além das entradas e reprises o palhaço teve e tem um lugar significativo na prática teatral que os circos desenvolveram e ainda desenvolvem.” (2003, p. 53). No circo brasileiro, um vasto repertório de comédias foi aos poucos sendo formado, possibilitando ao palhaço expandir suas formas de atuação. “Desse encontro adveio uma forma cênica aberta, formada e baseada na capacidade de interpretação e improvisação do palhaço, que teve a liberdade e a audácia de não estar restrito a gêneros fechados.” (Bolognesi, 2003, p. 53).

Bolognesi afirma que os roteiros das comédias circenses foram mantidos na memória oral dos palhaços, transmitindo-se de geração em geração. Além disso, os palhaços de circos pequenos, por serem a base do espetáculo e pelas características diferenciadas do pequeno circo, permanecem em cena um tempo muito maior, recorrendo assim às comédias de maior fôlego. Os palhaços têm um repertório de forte apego à linguagem oral, que pode ser encenada isoladamente, ou pode juntar-se às outras, num fluir ininterrupto, quando o ritmo e a duração são dados a partir da interação com a plateia.

Liberdade de criação. O palhaço apoia-se tanto na prática antiga e familiar dos atores circenses ao compor o seu personagem palhaço, de forma tradicional, como também é marcado pela singularidade do ator e sua liberdade de criação. “Desta forma, a atividade de criação, guiada pela liberdade, tornaria possível a exteriorização não apenas da realidade percebida pelo indivíduo, mas também das potencialidades das quais os indivíduos são portadores.” (PANTANO, 2007, p. 18). Embora a criação desses personagens se dê a partir de tipos fixos, constituídos no decorrer da história das máscaras cômicas, cada palhaço, no entanto, é único.

Muitas das habilidades do palhaço, principalmente do palhaço brasileiro de circo e rua, são utilizadas por mim nas encenações do Teatro Griô, como a atitude de contracenar com a plateia: a atuação, ora como palhaço, ora como um dos personagens interpretados pelo próprio palhaço*; as transições instantâneas de emoção, de ritmo e até de caracterização dos personagens; a criação de seu próprio personagem palhaço e a autoria de sua apresentação artística; a capacidade de rir de si mesmo e ao mesmo tempo de revelar o encantamento e o sublime através de elementos simples como um pedaço de tecido, uma flor, um instrumento artesanal ou um expressão facial, bem como a utilização do corpo como um todo expressivo, a transitar entre o grotesco e o sublime; a aptidão para criar atmosferas repletas de imaginação e poesia do mesmo modo que sai delas facilmente para revelar aspectos do cotidiano.

Estabelecem-se, portanto, intricadas relações entre o palhaço e o ofício do ator em meus processos criativos no Grupo Teatro Griô, desde uma abertura à oralidade na transmissão dos conhecimentos, até os procedimentos adotados no próprio desempenho cênico, como a organização dramatúrgica (de sua própria autoria, recorrendo, no entanto a tramas de tradição oral), a interação com o público, e a atitude do artista de conceber ele próprio seu personagem, que assume traços de sua própria personalidade.

 

Segundo Odette Aslan (1994), o que diferencia um ator de teatro, chamado dramático, do palhaço de circo, que atua em esquetes, são, sobretudo, o tom e o estilo da obra. E, ainda segundo a autora, seria mais comum que um artista do teatro de variedades conseguisse representar em um teatro de comédia, aparentemente sem grande esforço de adaptação, ao contrário do ator que custaria muito a ajustar-se às atividades paralelas dos circenses e do teatro de variedades. Aslan lista uma série de qualidades inerentes ao artista do teatro de variedades e do circo, como: segurar o público desde o começo; o dever de dar o máximo de seus esforços e da sua habilidade; saber sustentar sozinho a cena; atuar de maneira econômica e despojada; ter senso de improvisação; segurar o imprevisto; saber contracenar com o público; ter senso de ritmo, do efeito que utiliza o sentido do cômico; saber mudar rapidamente de roupa e de maquiagem, de personalidade.

Todas essas qualidades que acabo de expor, propostas por Aslan (1994), são também pertinentes ao processo de criação das encenações do Grupo Teatro Griô, à exceção da qualidade de saber mudar rapidamente de maquiagem, que não são imprescindíveis, uma vez que assumimos um personagem narrador que irá transitar entre diversos enredos e até a caracterização de diversos personagens das narrativas. Ele não precisa, necessariamente, mudar sua maquiagem, pois os personagens podem ser simplesmente esboçados a partir de expressões vocais características, ou da utilização de um fragmento de figurino, uma mudança no gestual, no ritmo, no deslocamento em cena, dentre outros elementos que podem ser utilizados sozinhos ou combinados entre si, a partir do jogo que se estabelece no desempenho do ator ao alinhavar a encenação das distintas tramas.

A vertente do circo-teatro brasileiro. O circo no Brasil manteve uma estreita ligação com o teatro e solidifica-se através de adaptações teatrais do chamado circo-teatro. “Pelo que sabemos essa modalidade do circo de representar melodramas, de fazer teatro, é uma característica do nosso circo”, segundo Pantano (2007, p. 26). O palhaço brasileiro tem, então, características singulares, que o diferenciam dos palhaços europeus, como a de ser o protagonista dos espetáculos circenses, devido às encenações de melodramas. Atua das mais diversas maneiras, como palhaço propriamente dito e com sua atitude nas cenas de circo-teatro assumindo variados tipos cômicos.

A metodologia por mim desenvolvida no Teatro Griô está mais próxima dos palhaços brasileiros de circo e rua do que dos clowns “europeizados”. Além da já citada maneira genuína com que o palhaço se destacou nos circos-teatros do Brasil, “o palhaço brasileiro, ao criar seu personagem, é despojado. Em sua maioria, eles descrevem seus personagens como ‘alegres’, ‘escrachadas’, ‘moleques’ etc.” (PANTANO, 2007, p. 29). Portanto, segundo Pantano (2007), o palhaço brasileiro mesclou algumas características desse palhaço e criou o seu próprio personagem, distinto do clown europeu de cara branca e com gestos delicados, que não existe mais em nossos circos.

Interessa-me frisar, mais uma vez, a relação do ator com o palhaço em sua expressão mais despojada, repleta de liberdade e subversão, sem esvaziamento do potencial grotesco, como ocorre em clowns que se apropriam do tipo cômico como linguagem desprovida da irreverência do circo e da rua e estão mais próximos de uma concepção que enfatiza apenas a docilidade e fragilidade do palhaço. Esse tipo de visão clownesca, que busca afastar-se do que é popular e muitas vezes “borrado”, aproxima-se mais de uma valorização poética de um ideal de beleza, a qual, ao rejeitar os aspectos mais “baixos” do palhaço, acaba aniquilando o seu lado marginal, ao perder contato com a espontaneidade popular, rude e ligada ao fracasso que justamente deu origem ao palhaço.

Note-se que é possível observar essa irreverência característica dos palhaços brasileiros dos pequenos e médios circos também em muitos palhaços de rua e até de alguns que surgem de uma experiência teatral, mas que não esvaziaram o potencial grotesco de sua composição. É o caso, além do Teatro Griô, de palhaços como André Casaca, Ângela de Castro, Natalie Mentha, Roberto Stamati, Tortel Poltrona, Luís Carlos Vasconcelos, Chacovachi e tantos outros. Nestes, é possível perceber toda a poesia e subversão em composições artísticas que não retiram do palhaço o seu ingrediente tosco e estúpido, ao contrário de uma concepção do palhaço como uma linguagem cheia de formalidades (para não dizer receitas), mais próxima de um ideal aristocrático que procura em muitos momentos afastar o clown do que seria a “grosseria” dos tradicionais palhaços.

Estupidez e astúcia juntas. O palhaço de tradição brasileira aproxima-se mais do tipo subversivo Augusto, “sua característica básica é a estupidez e se apresenta frequentemente de modo desajeitado, rude e indelicado. No Brasil, encontra-se no termo palhaço o equivalente mais apropriado do Augusto” (BOLOGNESI, 2003, p. 74), afastando-se do tipo oposto ao clown Branco, que tem como característica básica a boa educação, a elegância da tradição aristocrática, e que acabou desaparecendo de nossos circos e companhias cômicas populares. O palhaço brasileiro assimilou alguns aspectos do Branco e compôs um Augusto repleto de dualidade ao agregar num mesmo palhaço, ao mesmo tempo, a estupidez e a astúcia, a ingenuidade e a sagacidade, a tolice e a esperteza, a subversão à ordem e a vitória ao fracassar. Esse é um tipo de palhaço que aponta uma associação com o povo brasileiro, sendo muito bem representado em tipos como João Grilo, Pedro Malazartes, e o próprio anti-herói advindo da tradição africana, Ananse, que tece suas artimanhas para sobreviver diante da injustiça social.

O palhaço nos ajuda a perceber a importância de viver o momento presente. Aponta para o fato de que o melhor de um processo criativo é o próprio trajeto, assim como o valor de uma trilha é o próprio percurso. A admitir nossas imperfeições, sem precisar perder a alegria, e a aproveitar a vulnerável condição de ser humano como algo repleto de simplicidade, humor e poesia. O palhaço é dono de uma esperteza que não esvazia o potencial de ternura, ao buscar o revide a partir do riso, muitas vezes da capacidade de rir de si mesmo e encontrar no risco, no erro e na derrota a possibilidade de ser feliz.

Nota:
* “Os palhaços que atuam nos circos-teatros, ao representar comédias ou dramas, caracterizam-se diferentemente da personagem/palhaço, criando assim um tipo, uma outra personagem”. (PANTANO, 2007, p. 26).
REFERÊNCIAS:
 ASLAN, Odette. O Ator no Século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994.
 BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003.
 CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.
CASTRO, Angela de. A Arte da bobagem-Manual para o clown moderno. Londres: The Why Not Institut, 1997.
SOUZA, Rafael Morais de. Na Teia de Ananse: um griot no teatro e sua trama de narrativas de matriz africana. Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011.
PANTANO, Andréia Aparecida. A Personagem Palhaço. São Paulo: UNESP, 2007.

 

Rafael Morais: é doutorando, mestre e bacharel em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Pós-graduando em Mitologia Comparada à Psicologia Analítica no Instituto Junguiano da Bahia (IJBA).
Narrador, ator, encenador e professor de Teatro. Coordenador artístico da Companhia Teatro Griô

 

  • TEATRO E TRADIÇÃO ORAL: 15 ANOS DE ESTRADA DO GRUPO TEATRO GRIÔ

         

A publicação comemorativa marca o surgimento da editora Companhia Teatro Griô e celebrar os 15 anos de existência do grupo. Com artigos de Vanda Machado e Rafael Morais, depoimentos de artistas convidados, parceiros artísticos, personalidades como Mãe Beata de Yemonjá, Lydia Hortélio, dentre outras, a publicação põe em evidência através de textos e imagens a premiada trajetória da Companhia Teatro Griô. Teve o apoio financeiro da Fundação Cultural do Estado da Bahia através do Fundo de Cultura e foi publicada em 2015.