Entrevistador: Fabrício Brandão | Entrevistado: Rafael Morais
Publicado em: Revista Diversos Afins, entre caminhos e palavras. 06/2016.
O ano, 1998. O espírito que paira na atmosfera de ações traduz-se numa palavra profundamente motivadora: encantamento. Diante disso, há que se reconhecer que projetos de vida, sobretudo aqueles que são ligados à arte e seus amplos matizes, ganham corpo na medida em que se baseiam num genuíno desejo de transformação. Evidenciar os sentimentos humanos é, sem dúvida alguma, um diferencial de qualquer investida artística. Marcado por tal lema, eis que surge, em Salvador, o Grupo Teatro Griô.
Juntamente com sua parceira na vida e na arte, a atriz Tânia Soares, o também ator Rafael Morais demarca os primeiros passos do que é hoje uma das principais companhias de teatro da Bahia, certamente também do Brasil. Originalmente vindos da arte teatral e circense, Rafael e Tânia voltaram suas atenções para a fabulosa ferramenta da oralidade e seus desdobramentos. Abraçando fundamentalmente o viés da narração de histórias, o Grupo Teatro Griô assinala todo um despertar em torno do que seus fundadores preferem chamar de palavra viva, aquela que une, mobiliza e promove mudanças no ser pensante e pulsante.
Sobretudo depois de testemunhar alguns espetáculos do grupo, os quais mostram o quão viva está a nossa memória diante dos caminhos da expressão oral, veio com vigor o desejo de entrevistar Rafael e saber dele que espécie de sustentáculo mantém acesos tais caminhos da arte. Com suas feições de ator, diretor, professor, Mestre em Artes Cênicas (UFBA), ele fala com a propriedade de quem vive o processo criativo cotidianamente, sem negligenciar seus apelos, chamados e também seus abismos.
Na conversa de agora, fica registrado um breve balanço desses 18 anos de atividade do grupo, através do qual Rafael Morais confessa que ali está também a dinâmica real de sua expressão enquanto ser humano. Suas respostas confirmam que o poder transformador da arte, movimento que se opera principalmente de dentro pra fora, é marcado especialmente pela capacidade de materializar os sonhos.
DA – O Teatro Griô surge como resposta a alguma necessidade em especial?
RAFAEL MORAIS – O surgimento do Teatro Griô não foi algo planejado. Veio de uma necessidade de falar sobre a nossa própria cultura. Na época, estávamos fazendo um trabalho voltado para o circo, para o teatro popular, e fomos realizar algo na Itália e Inglaterra com alguns pesquisadores teatrais e também da área de palhaço. Naquele momento, eu senti uma vontade de criar uma apresentação que falasse das nossas histórias. Logo que chegamos da Europa, fui fazer algumas oficinas a pedido dos professores da Escola de Teatro, e um deles, o querido e saudoso Carlos Petrovich, me convidou para ir a um terreiro de Candomblé em Salvador, o Ilê Axé Opô Afonjá. Fiquei encantado e, logo depois, o mesmo professor nos chamou para fazer um trabalho numa escola municipal de Salvador como pesquisadores do Núcleo de Estudos do Teatro Popular, o NET-POP, da UFBA. Fomos eu e Tânia como pesquisadores bolsistas do CNPq para fazer um trabalho de valorização da cultura oral, das histórias, dos mitos naquela escola a qual me referi e que fica dentro do terreiro. A partir daí, esse universo da tradição foi nos arrebatando. Isso em 1998. Começamos a desenvolver uma metodologia própria para levar essas histórias para as crianças da escola, os professores e também para o pessoal da comunidade, trazendo uma releitura, um universo de transposição dessas narrativas de tradição oral para a cena. Então, encenamos algumas histórias, fizemos cortejos, tentando realizar algo que não fosse o teatro tradicional. Vimos que o que fazíamos naquele momento em termos de teatro não contemplava aquele universo. À medida que íamos fazendo, criamos um jeito nosso de lidar com essas histórias, valorizando a simplicidade, a sinceridade, o contato direto com o público, o envolvimento das pessoas, tudo como se fosse uma festa, um encontro, uma roda de histórias com as pessoas mais velhas, sem tirar o brilho, o encantamento, buscando algo não artificial, mas sim uma palavra viva, que trouxesse essa cultura viva. Acho que foi um encontro mesmo, pois a gente ouviu aquelas histórias e pensou que tinham tudo a ver com o que estávamos querendo, mas nem sabíamos direito o que desejávamos encontrar. Foi a arte de contar histórias. Percebi que ela contemplava tudo o que buscávamos, um teatro popular, de encontro direto com as pessoas, que valorizasse nossa própria cultura, envolvesse as pessoas e pudesse ir a diferentes espaços. Queria fazer algo que não fosse restrito apenas ao palco italiano. Ir ao encontro do público, nos barracões, escolas, terreiros, praças.
DA – Qual a importância do viés da matriz africana no trabalho de vocês?
RAFAEL MORAIS – Foi desde o início uma grande inspiração. No entanto, o Teatro Griô não se limita às narrativas de tradição oral africanas ou afro-brasileiras. Trabalhamos com a tradição oral que existe no mundo todo em diferentes povos e culturas. Então, narramos histórias da Península Ibérica, da Rússia, Índia, do Oriente, dos árabes. Com a cultura afro-brasileira não poderia ser diferente, pois estamos na Bahia, onde essas histórias, cantigas e narrativas como um todo são predominantes. Ela tem uma importância muito grande por conta até desse contato com o público. A gente trata de histórias do mundo inteiro e temos diversos espetáculos inspirados em histórias de vários lugares. A matriz africana nos inspirou muito. No teatro, já éramos muito ligados a histórias da mitologia grega, nossa formação ocidental. Sempre gostamos de mitologia, e quando nos encontramos com os mitos dos Orixás, por exemplo, foi um encantamento, uma alegria. Acho que pelo encantamento essas histórias nos pegaram. Conseguimos, a partir dessa cultura afro-brasileira, perceber a junção da palavra cantada, essa ligação entre o sagrado, o mítico e o cotidiano. Aprofundando a pesquisa, fomos compreender que existe um mundo vasto de histórias de matriz africana, não somente dos Orixás, mas histórias como os contos de Ananse, a primeira aranha que existiu e que ensinou a arte de contar histórias aos homens. Tem contos muito mirabolantes, epopeias, uma riqueza muito grande do continente africano. Também temos histórias fascinantes em todos os povos, como é o caso dos árabes. Na verdade, a gente, com a cultura afro-brasileira, conseguiu tocar em narrativas que transcendiam as histórias dos irmãos Grimm, os tradicionais contos de fadas. Perceber essa diversidade foi fantástico. E a cultura afro-brasileira teve esse papel de abrir as portas para nós nesse universo da tradição oral.
DA – Há um viciado costume de se olhar a cultura de matriz africana apenas sob um ponto de vista meramente exótico, como se não houvesse um reflexo possível na realidade. O que você acha dessa redução?
RAFAEL MORAIS – Esse não é nosso olhar para com a cultura afro-brasileira. Não tem nada dessa questão do exótico, do que as pessoas chamam de folclórico, de buscar esses elementos que sejam mais histriônicos. A importância dessa cultura é muito grande, ainda mais aqui na Bahia. Mais do que imaginamos, essa cultura é nosso berço de civilização, de humanização e formação. Acho que isso também está muito relacionado à tradição oral, à questão de uma certa importância maior que se dá à palavra escrita como se a oralidade não fosse algo profundo. Acabamos muitas vezes desvalorizando por uma questão cultural, política, ideológica, dessa coisa de achar que tudo o que vem da África não presta ou que vem de um universo menor. Em nossas pesquisas, percebemos isso o tempo inteiro. E vemos o quão equivocada é essa visão de mundo que coloca a tradição oral, as referências africanas como algo menor. Temos alguns avanços acontecendo, algumas leis, como é o caso da Lei 10639 de 2003, que obriga o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas. Mas as pessoas às vezes não sabem como fazer. Alguns professores não têm a formação adequada, não sabem como trabalhar isso, pois a vida inteira tiveram uma formação que privilegia o eurocêntrico, desprestigiando tudo o que vem da África. Mas sinto que isso está mudando. No Teatro Griô, fugimos esteticamente desse campo do exótico. Inclusive, fazemos questão de não levar para a cena essa visão de mundo, tanto que não representamos, por exemplo, Orixás em cena, ou seja, mudamos muitas vezes as melodias das canções, trazemos um universo que coloca o ser humano e os sentimentos das histórias em evidência. Essa dramaturgia é construída não para reforçar o exótico. Temos, por exemplo, o espetáculo “Histórias de Mãe Beata” que é bem simples, mas que é uma festa de samba de roda que acontece e as pessoas vão contando histórias, mas em nenhum momento representamos os Orixás em cena. Não vamos ao terreiro e copiamos o que existe ali. É uma atitude também de respeito e de aprofundar essas questões. Acho que é um perigo muito grande você tratar um universo tão rico como algo simplesmente exótico. É um desserviço e um desrespeito, até uma ofensa a toda e qualquer cultura tradicional você se apropriar dela e não devolvê-la como se deveria. Buscamos valorizar a vivência, que é tão rica da cultura afro-brasileira, e a palavra viva, os grandes narradores que temos, não apenas os griôs, mas os akpalôs, que significam fazedores de histórias. Essa palavra viva que toca nos sentimentos humanos, de pessoas de qualquer lugar do mundo. Recentemente, apresentamos em São Paulo cinco espetáculos no Festival Internacional de Narradores, o Boca do Céu, e tinha gente do mundo inteiro que ouviu essas histórias da cultura afro-brasileira e se encantou, pois contamos e essas pessoas se emocionaram não porque acharam engraçado e se envolveram. Procuramos burilar os sentimentos e tratar isso como a gente sente e vive. Muita gente olha os africanos com a questão das cantigas, com essa coisa do feitiço das palavras, do sagrado com uma condição de se assustar porque eles (os africanos) transcendem a culpa, vão para o prazer no sentido do corpo que dança, está vivo e ligado à magia. Aqui no Ocidente parecemos ter perdido essa magia, mas ela está em todos os povos. Se você for ver as histórias dos nórdicos, dos orientais, o tempo inteiro esse universo de magia está presente nelas. As histórias afro-brasileiras encantam porque mantêm ainda viva essa sabedoria que está muitas vezes mais generalista do que específica, valorizando a vivência, a experiência, o momento aqui e agora, as cantigas, os poemas, os orikis. É muito lindo esse universo. Não tem como reduzir ao exótico. Tratamos essas histórias da mesma maneira como tratamos as demais. Reinventamos aquilo para a cena. Acredito que precisamos ter da cultura afro-brasileira essas referências. As histórias que o Teatro Griô acaba levando para pessoas de diferentes lugares têm um papel muito importante de ser mais uma referência. É muito bacana percebermos as crianças afrodescendentes assistindo o espetáculo e se reconhecendo nele a partir das histórias e não da forma em si, transcendendo inclusive a cor da pele. É a história que passa adiante, o universo do imaginário. Então, é uma riqueza e um poder muito maior do que a própria imagem que está se vendo ali. Uma importância muito grande nesse sentido de formação e de educação. A narração de histórias afro-brasileiras tem esse componente de ser civilizatória, das pessoas reconhecerem a cultura como algo que fala diretamente a elas, os sentimentos humanos, os heróis e anti-heróis. As histórias aproximam as pessoas, não as excluem. É a busca da gente se reconhecer enquanto ser pensante, que sente e vive nesse mundo. Além de uma importância grande de formação e educação, vem desmistificar e revelar a luz que existe nessas histórias e que às vezes está por baixo de um véu de exotismo e de ridicularização do outro. A arte de narrar histórias consegue desvelar esses sentimentos, essas imagens e trazer para nossa vivência cotidiana de ser humano que vive e pensa. Temos as particularidades da cultura de cada um, que são importantes enquanto reconhecimento das diferenças, mas no fundo somos feitos de sonhos e sentimentos.
DA – O que dizer da oralidade enquanto essa verdadeira mantenedora da memória?
RAFAEL MORAIS – Interessante essa pergunta porque a gente poderia imaginar justamente o contrário, que aquilo que não escrevemos o vento leva, como diz um ditado popular, ou seja, não conseguimos registrar. A tradição oral, inclusive, faz nascer a escrita. E a memória é viva, o tempo inteiro a gente está reinventando, revendo tudo. A tradição oral tem muitas funções e estratégias mnemotécnicas de fazer permanecer essa memória a partir das suas transformações. Temos muito material de tradição oral que se manteve vivo além da escrita. Hoje a gente consegue ver que os contos, mitos, estão aí nas coletâneas de recontos, histórias, em material escrito. Muitas vezes isso tem sido uma possibilidade muito bacana para pesquisadores, artistas e para o próprio povo conhecer essas histórias que transcendem os tempos. Ao mesmo tempo, a tradição oral mantém essa palavra viva, que não está ali só cristalizada, mantém a magia. A magia você encontra no conto que está escrito, mas é bem diverso de você poder ouvir uma história de boca para ouvido. Essa dinâmica da tradição oral tem sua própria força porque é flexível, se transforma, vai mudando com os tempos, com o saber que a gente já construiu há muitos séculos. É como se fosse uma espiral nesse movimento de memória e de passagem dessa tradição. A própria arte de narrar histórias sempre foi essa mantenedora, a trama da história sempre foi passada do mais velho para o mais novo por sucessivas gerações. Se a gente atentar, vamos perceber no dia a dia a quantidade de histórias nas vivências de cada pessoa. Estamos o tempo todo transformando isso. A escrita passou a ser mais um instrumento de interação, mas esse mecanismo de memória continua vivo o tempo inteiro no ser humano. Nós todos somos seres épicos, narrativos, além de lúdicos e pensantes. Por que será que permanece vivo o encantamento no mundo de hoje? Por que é que hoje em diversos ambientes que chegamos há o interesse de pessoas de todas as idades com as histórias de tradição oral? É algo inexplicável. Todo mundo reclama que os meninos ficam muito ligados na internet, televisão, nos joguinhos, mas quando eles estão diante de uma história que está sendo contada é como se reacendesse um mistério na memória dessas crianças. Essas crianças são de todas as idades, pois em alguns espetáculos nossos, às vezes, vêm adultos sozinhos. Nosso público é bem heterogêneo e é bem bacana perceber esse jogo de memória que há na gente, essa necessidade de ouvir essas histórias e depois sair espalhando elas por aí. No Brasil, acontece uma coisa muito interessante. A cultura popular está viva nas cantigas, não somente naquelas de infância, mas também nas cantigas de trabalho, nos mutirões, cirandas, diversos ritmos espalhados pelo país. Aqui na Bahia temos as cantigas de roda de tirar versos. É uma maneira de se preservar através da música. É interessante que as histórias de matriz africana, a maioria delas, se mantiveram preservadas na África por conta de cantigas, mas aqui no Brasil perdemos muito isso, ficou mesmo a trama se passando. A cantiga traz um momento de lembrar a trama inteira da história. No Teatro Griô, gostamos muito de misturar a palavra cantada com a falada, a palavra poesia, a palavra lírica.
DA – A contação de histórias pode ser melhor abrigada no seio da educação formal?
RAFAEL MORAIS – Com certeza. E não apenas com objetivo explícito de ensinar, pois a história, a narrativa de tradição oral transcende a informação e educação, vai além, para o universo do encantamento, do tocar as pessoas. Nesse universo onde tudo acontece pleno, você está o tempo todo aprendendo. Esse aprendizado que vem de uma sessão de histórias é difícil de descrever no sentido mais amplo porque é muito profundo. Além de tudo o que está sendo ensinado a partir da narrativa, a história ensina por si só nessa experiência de arte. As escolas muitas vezes estão preocupadas apenas com um depósito de informações para uma resolução prática que é fazer provas, o que acaba sacrificando todo o ser que está ali para aprender. Aprender não somente no sentido de conhecer, mas de ser mesmo. A história vem para esse campo da convivência, do aprender a instigar, a correr riscos, sonhar, a você perceber o universo do imaginário, que é tão rico, e de fazer isso se desenvolver cada vez mais em alunos de toda e qualquer idade. A narração de histórias pode acompanhar todos os momentos de nossa vida, do nascimento até nossa despedida aqui dessa experiência de vida. O tempo inteiro estamos contando histórias. O bom professor conta histórias a todo tempo, mesmo quando não acha. Um tema bem narrado é o papel de todo professor, aquele que consegue revelar o que não está acessível ao outro ser. Os excelentes professores têm esse domínio da narrativa, da comunicação. Muitas vezes a gente vê a arte sendo usada como um simples instrumento de aprendizado das disciplinas. Precisamos mesmo ter momentos de apreciação estética nas escolas, pois senão ficamos colocando a arte a serviço de determinados conteúdos. Nesse momento, temos um ganho em todos os sentidos, cognitivo, afetivo, interpessoal, imaginário. Precisamos descobrir isso com urgência para dar um pouco mais de frescor à educação. A arte de contar histórias vai num ponto crucial da educação, que é o pensamento crítico, a formação desse ser que é capaz de encontrar seus caminhos. A arte de contar histórias não entrega tudo de bandeja, ela convida você a enveredar nesse caminho de descoberta de si mesmo. O bom contador sabe que não está ensinando, está ali aprendendo junto. É nesse encontro entre narrador e ouvinte que acontece essa magia, que é a arte de narrar histórias. É muito bonito você perceber o aprendizado que surge daí. E, claro, não tem nada a ver com as lições de moral, como acontece muitas vezes num sentido de podar a criança. Na arte de contar, a história passa à frente e as pessoas vão conseguindo fazer suas próprias interpretações sem que alguém precise impor algo, dizendo que é isso ou aquilo. É um momento de liberdade artística, no qual as histórias podem ser aliadas da educação com alegria, encantamento, ludicidade e plenitude. Para mim, o valor está no próprio encontro da narração, momentos das pessoas poderem ouvir e contar histórias sem se preocupar com os mecanismos didáticos.
DA – Uma coisa bastante interessante no trabalho do Teatro Griô é a multiplicidade de atuações, ou seja, não apenas a encenação dos espetáculos é o foco, mas também desdobramentos variados sob o ponto de vista da formação, das rodas de conversa, intercâmbios, sem falar na mescla de elementos presentes, tais como o clown, música, dança. Como é atuar dentro dessa intenção multifacetada?
RAFAEL MORAIS – É um presente para o artista. Uma oportunidade de não separar as possibilidades criativas de expressão. Temos tudo ali ao mesmo tempo. Você está ali contando a história, mas de forma plena, com movimento. No sentido da formação, ela é muito ampla, de elementos do cômico, do palhaço, do teatro de rua. O aprendizado para o artista com relação ao espaço cênico da rua é fantástico. Essa possibilidade de ter esses elementos técnicos da voz, da interação com o público, da disposição do espaço. O Teatro Griô é realmente um presente para nós que o integramos porque é nossa morada artística, digamos assim. É a possibilidade de você conviver com tudo aquilo que acredita. É uma fonte que nunca seca. Parece que o tempo inteiro estamos descobrindo coisas novas, pesquisando. É uma obra muito aberta que vamos construindo no contato com o público. Ao mesmo tempo em que é um presente, é também um desafio você lidar com essa metodologia do Teatro Griô, tanto que vira e mexe a gente faz audição, algumas pessoas ingressam e temos uma maneira própria de trabalhar que acaba unindo esses elementos todos que você falou, mas com muita simplicidade. Fugimos um pouco do que é esse mundo do espetáculo, acabamos entrando num encontro com a arte em diversos lugares e matrizes culturais. Buscamos esse momento de convivência do público com os narradores, as histórias. E, claro, tem todo um aprimoramento técnico com diversos profissionais que acabam contribuindo. É um universo muito amplo, que a gente busca dar unidade e simplicidade. No grupo, uma coisa bacana é que os atores não sabiam tocar um pandeiro e hoje a gente já tem os narradores tocando percussão, rabeca, acordeom. É um trabalho que não para nunca. O tempo inteiro estamos aprendendo, exercitando, pesquisando, aprofundando. É muito instigante fazer parte como artista desse núcleo. Mas a tradição oral, a palavra viva, é o que dá unidade a todo esse trabalho.
DA – O que dizer da resposta do público nesses diferentes ambientes por onde vocês circulam?
RAFAEL MORAIS – Impressionante. Aqui em Salvador a gente vai para diversos ambientes e às vezes quer atingir um público distante. Por exemplo, fizemos um projeto de teatro de rua na Casa da Música, no Abaeté, em Itapuã, e para nossa alegria veio gente da cidade inteira. Temos percebido que o público tem acompanhado a gente. As pessoas vão percebendo o grupo como uma grande família e criam um certo vínculo com a gente, o que acho bacana. Cria uma intimidade e as pessoas encontram a gente na rua e falam conosco como se fossem amigas. Falam das histórias e de como foram tocadas por elas. E a gente percebe uma sinceridade. Acabamos criando uma maneira diferente de narrar as histórias, que não é teatro convencional, um caminho artístico autoral. Seja em comunidades mais distantes como quilombos, comunidades rurais, ou em grandes centros urbanos, a receptividade é ótima. Em São Paulo, por exemplo, a recepção foi fantástica. As pessoas lotavam as apresentações, os ingressos esgotavam em meia hora, elas se interessavam pelas histórias. Engraçado que tem gente que pergunta se as histórias são reais. Então, o vínculo que criamos com o público acaba sendo de cumplicidade. Acho que é o maior presente que o artista pode ter, saber que as pessoas estão se importando. Em São Paulo, conhecemos na plateia alguns artistas de fora do país, tanto que estamos indo pra Buenos Aires por conta disso. Fomos convidados a apresentar três espetáculos nossos num festival internacional de narração oral porque o público assistiu. É um envolvimento que não é frio. A gente acaba de alguma forma passando para o público um pouco do que vivenciamos em nossas salas de ensaio, essa relação de sinceridade, esse mergulho nos sentimentos humanos. E o público percebe.
DA – Salvador é uma cidade que abraça verdadeiramente o teatro?
RAFAEL MORAIS – Pergunta complexa (risos), porque há vários públicos e tipos de teatro. Tudo da Bahia é muito paradoxal mesmo. Você não tem um único jeito, mas sim uma infinidade de possibilidades com relação a essa recepção. O teatro pode ser melhor abraçado. Tem um amigo que diz que se amanhã fecharem todos os teatros de Salvador, ninguém vai sentir falta (risos). É uma piada, mas faz a gente refletir, pois se fecharem, as pessoas não vão protestar. O teatro também é algo muito amplo. A Bahia tem uma tradição de teatro muito grande, não só pela primeira faculdade da América Latina, a Escola de Teatro da UFBA, que possui grandes mestres, mas também pelo histórico de teatro popular que influenciou muita gente. O teatro em Salvador é muito forte. Quando cheguei em Salvador há quase 20 anos, senti que a pulsação de espetáculos era realmente muito maior que agora. Alguma coisa se quebrou nesse mecanismo de atração do público, de constância do público buscando os espetáculos. Porém, quando acontecem determinados espetáculos, o público vem. Então, não é algo estático. Tem a coisa do mercado também, não é só questão do público abraçar e gostar. Aqui em Salvador, ao mesmo tempo em que o público ama teatro, a gente percebe que ele poderia abraçar mais. No entanto, quando acontecem os espetáculos de rua, alguns atingem um público imenso. O que tem acontecido com o Teatro Griô é o fato de encontrarmos pessoas que dizem ser aquela a primeira vez em que foram ao teatro. Acho que estratégias, caminhos e possibilidades podem ser buscados para aproximar as pessoas ao teatro. O teatro na Bahia é muito forte, rico e valorizado. Tem uma vanguarda em pesquisa. O público que vai ama o teatro, mas acho que mais pessoas poderiam ser atingidas. Aqui em Salvador, apesar da imensa afeição das pessoas com espetáculos realizados na rua, não há um teatro de rua pulsante. Interessante esse paradoxo. A gente tem uma demanda, digamos assim, muito grande por teatro de rua, pessoas que lotam os espetáculos quando eles acontecem. Fizemos um espetáculo chamado Circo Teatro na Estrada, que saiu por diversos bairros de Salvador, e em todos eles a recepção era imensa, as pessoas ficavam felizes com o que estava acontecendo, querendo que acontecesse novamente. Com relação a isso, o público abraça mesmo. Você conta nos dedos os grupos que fazem teatro de rua em Salvador, e mesmo assim não fazem com aquela constância porque se acredita que não tem tradição, mas tem sim. O público quer abraçar, mas como vai fazer isso se não tem muitas vezes algo que se aproxima dele?
DA – O que o faz continuar naquilo que você definiu como a arte de sonhar acordado?
RAFAEL MORAIS – Essa pergunta é muito difícil. Eu me pergunto muito isso. No entanto, tenho continuado, tenho seguido em frente porque fazer arte aqui, não só na Bahia, mas no Brasil, não é fácil, pois além das dificuldades do ofício, tem todo um mundo de coisas que precisamos superar a cada momento. Durante muito tempo, pensei que não era algo racional, pois se sabia que era essa dureza por que continuava? Tenho continuado e, quando olho para trás, percebo que realmente é meu caminho. Não dá pra explicar muito. Hoje consigo compreender esse desejo de seguir em frente, que ultrapassa o medo, pois a cada projeto novo há um risco muito grande. Hoje se fala muito em crise, mas para quem faz arte é pior ainda, pois a gente vive daquilo que tece, do trabalho cotidiano, dos espetáculos, do processo criativo que por si só já é algo efêmero. Aí, a gente seguindo adiante com isso é muita coragem. Agora, não me vejo fazendo outra coisa. Claro que surgem propostas de seguir por outros caminhos, longe da arte, o que muitas vezes poderia trazer uma segurança no sentido material. Mas acho que é a arte que me mantém vivo, pois abraço um caminho de crescimento e vida, um ofício. É meu lugar no mundo, minha maneira de continuar seguindo em frente, sonhando. O meu trabalho se confunde com meu sonho. Acho que isso é muito profundo. É ao mesmo tempo o meu devaneio no sentido do processo criativo e de tudo o que implica você fazer arte, de mergulhar nos abismos desse processo que não é fácil para ninguém, ainda mais nesse tempo que estamos vivendo. Um outro nome que se dá ao pessoal que segue esse ofício das histórias é Gente das Maravilhas, pois se encantam com a simplicidade e grandeza da vida, com o encontro. Quando entra num processo criativo, nem imagina descobrir coisas que nem sabia que existiam em você. Isso quando experimenta de verdade o processo criativo, pois tem muita gente que executa determinadas funções ditas artísticas, mas não vive ele. Você não consegue largar. Estou aqui hoje pensando em novos projetos, novos caminhos. É também a ideia da missão. Sinto isso muito forte. Tenho vontade de continuar fazendo teatro, mas ao mesmo tempo é maior do que tudo isso, pois arrebata, chama e você não tem saída. E também você acaba se comprometendo. Eu mesmo tenho compromisso com esse grupo, que hoje tem vários artistas que sobrevivem junto com a gente, alguns com outros empregos. Então, você acaba entrelaçando sua missão com as de outros parceiros cúmplices. Eu e Tânia, que fundamos o Teatro Griô, temos uma responsabilidade muito grande. Minha filha também, que desde pequenininha está envolvida no universo artístico do teatro. A gente virou uma grande família que faz isso, meio que vive e respira o tempo inteiro isso com grande responsabilidade, mas também com muita alegria. As dificuldades não são a tônica, pois a gente supera todas elas e vem um ganho imenso que não sabemos dizer o que é.
Fabrício Brandão edita a Revista Diversos Afins, além de buscar abrigo em livros, discos e filmes.